Márcia Adão descobre a história: SOMBRAS DA CIDADE



Era uma negra moça ainda, uns 34 anos, mais ou menos. E andava por aí, ao léu, vivendo de esmolas. Não era muito certa do juízo ao que diziam.

Contudo, possuía de seu, um colchão e um filho de cinco anos. Colchão que era só trapo voando e tripas de capim saindo pra fora. Quanto ao filho, diabrete incorrigível, preto feito peixe, era o terror da molecada, das vidraças e dos jardins públicos e particulares.

E aquela mãe negra, moça ainda, 34 anos mais ou menos, andava por ai, ao léu, vivendo de esmolas, o colchão às costas, gritando o nome do filho, diabrete de cinco anos, que descia de um balaústre e atravessava a rua, num relâmpago, a frente de automóveis velozes, pra puxar, pelo rabo, o angorá dorminhoco de uma janela.

- Filhiiiiiinho! Venha cá, meu filho!

Era um peregrinar, por essas ruas de meu Deus, desde as primeiras horas do dia. Colchão às costas feito mochila de soldado, escola encardida pendente do braço, as roupas em frangalhos, macilenta, sossegada, os olhos como que olhando pra dentro, aquela mãe, moça ainda, colhia por esmola, aqui, um pedaço de pão; ali, algumas laranjas;acolá, uma moeda; mais adiante, um desaforo....

Não era muito certa do juízo, coitada. E se não tinha palavras com que agradecer o pedaço de pão, as laranjas ou a moeda, também não tinha boca pra responder ou íntimo pra sentir ofensas. As suas palavras, a sua boca, o seu íntimo, tudo, tudo que dispunha, resumia-se naquele nome que era um poema santo a transformar em ouro os trapos do seu destino.

- Filhiiiiiinho! Venha cá, meu filho!

E a noite descia sobre a cidade. A jovem mãe, no entanto, só tomava conhecimento do reinado da Lua ao ouvir a voz do filho:

- Mamãe. Quando é que se dorme hoje?

Ela estancava surpresa. Ué...E procurava com os olhos, uma árvore, uma construção, um canto de parede.... E estendia o colchão, que era uns farrapos. E deitava-se, aconchegando o filho junto aos seios.

- Tadinho! Judiação, não é? Batendo rua o dia inteiro... Bi, bi, bi... Quem é que tem um filhinho mais bonito? ...

E dormia. Ao sereno, ao vento, à chuva...

Certo dia, lá ia aquela mãe, preta, maltrapilha, o colchão às costas, a sacola de esmolas no braço e o filho à frente, saracoteando, atirando pedras, escorraçando os cachorros e gatos de luxo das janelas, batendo nas crianças finas de gente rica, trepando nas grades, falando nomes feios. Um completo capetinha. Nada o intimidava. Nem a cara feia dos homens; nem a dentuça dos policiais de coleiras registradas. Talvez nem ouvisse aquela voz doce chamando-o carinhosamente:

- Filhiiiiinho! Venha cá, meu filho!

E ao atravessar a rua na disparada, é colhido, em cheio, por um caminhão. Corpo magro, levezinho, foi atirado a uma distância de vinte passos. Estava morto.

Foi um alvoroço. O chofer nem teve tempo de sair do carro. Em poucos momentos viu-se cercado de gente – homens, mulheres, crianças – ameaçando-o, mostrando-lhe os punhos cerrados...

Uma menininha de cor de rosa, muito corada, desvencilha-se da pajem entra correndo, em casa e com a voz embargada pelo soluço, abraça-se com uma bela senhora:

- O Filhinho, mamãe!

Devia ser uma louca aquela negra. Estava no meio da rua, ante a multidão boquiaberta debruçada sobre o cadáver ensangüentado de um menino. E falava baixinho, carinhosa:

- Tadinho! Judiação não é? Batendo rua o dia inteiro....Bi, bi, bi, bi .... Quem é que tem um filhinho mais bonito?

2 comentários:

Cristina Lima disse...

Adorei a história contada ,eu estava lá quando ela contou e achei muito legal,e fiquei pensando quantas histórias do nosso povo está perdida por aí,esse resgate é uma forma de tranformar,criar e recriar a nossa identidade

Anônimo disse...

intiresno muito, obrigado