A Moça Tecelã



Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear. Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor de luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.


Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos de algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.


Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.

Assim, jogando a lançadeira de um lado para o outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou como seria bom ter um marido ao seu lado.

Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.

Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando na sua vida.

Aquela noite, deitada contra o ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

- Uma casa melhor é necessária - disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.

Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. – Para que ter casa, se podemos ter palácio? – perguntou. Sem querer resposta, imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.

Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.

Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.

- É para que ninguém saiba do tapete, -- disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: -- Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de novo.

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.

Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e, jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer o seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.

A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.


Texto de : Marina Colassanti


Foto: UFMG

5° PRÊMIO BARCO A VAPOR DE LITERATURA INFANTIL E JUVENIL - INSCRIÇÕES ATÉ 28 DE FEVEREIRO

Este ano acontece o 5º Prêmio Barco a Vapor de Literatura Infantil eJuvenil, uma iniciativa da Fundação SM que premia anualmente textos originais voltados para crianças e jovens. O prazo de inscrição para esta edição do certame se encerra no próximo dia 28 fevereiro e podemc oncorrer escritores com mais de 18 anos, com textos inéditos que se encaixem em uma das quatro séries da Coleção Barco a Vapor: leitor iniciante (6 e 7 anos), em processo (8 e 9 anos), fluente (10 e 11anos) e crítico (12 e 13 anos).
O ganhador receberá R$ 30 mil em dinheiro, referente ao adiantamento de direitos autorais, além de ter sua obra publicada por Edições SM.Também poderão ser publicados outros originais inscritos e recomendados pelo júri.
O prêmio contribui na composição da Coleção Barco a Vapor, que já setornou a maior do mundo para o público infantil e juvenil: centenas de livros de autores de todo o mundo, com o objetivo de despertar o prazer pela leitura nos jovens leitores ibero-americanos e estimular aprodução literária nacional. A premiação acontece há 30 anos na Espanha e existe em todos os países em que o grupo atua: Brasil, Chile, México, Argentina, Porto Rico, República Dominicana, Colômbia,Peru e Espanha.
Em 2008, o vencedor foi o escritor e jornalista mineiro DélcioTeobaldo com Pivetim, romance sobre o cotidiano vivido pelos meninos de rua, que será lançado ainda no primeiro semestre de 2009. Nas edições anteriores, foram premiados Flávio Carneiro, com A distânciadas coisas, (2007), Gláucia Lewicki, com Era mais uma vez outra vez(2006), e Caio Riter, com o título O Rapaz que não era de Liverpool(2005).
Para se inscrever, leia o regulamento completo, disponível na páginado Grupo SM na Internet: http://www.edicoessm.com.br/

Salam Paz Shalom: uma manifestação cultural pela Paz no Oriente Médio

Integrando as manifestações de solidariedade aos povos envolvidos no conflito do Oriente Médio, promovidas pelo Pontão de Convivência e Cultura de Paz do Instituto Pólis, será realizado um encontro poético/cultural com a arte da tradição árabe e judaica. Estarão presentes o ator João Signorelli, que contará histórias de paz; Maurícia Vasconcellos, focalizadora de danças circulares que fará uma roda de danças israelí; e do músico Oscar Usman, que apresentará canções da tradição sufí; e poemas de paz, lidos pelo poeta e coordenador do Pontão, Hamilton Faria.

Data: 23 de janeiro – à partir das 19h
Local: Instituto Pólis – Rua Araújo, 124 – Vila Buarque (próximo ao metrô República)
Entrada franca

As origens e os sabores tradicionais da culinária paulista

Diferentes tradições ajudaram a formar a culinária paulista, que não recebeu contribuições apenas da gastronomia japonesa, árabe ou italiana, mas também do hábito alimentar de índios, escravos e colonos. Trata-se de uma cozinha mais tradicional e igualmente saborosa, submersa nesta rica variedade cultural paulista, agora resgatada por Rosa Beluzzo em São Paulo: memória e sabor, lançamento da Editora Unesp, com apoio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.
Não se trata de “apenas” um livro de receitas, mas de compreender épocas e histórias. Rosa busca, nos manuscritos e velhos livros de receitas familiares, modelos alimentares e transformações históricas, como a inclusão da cozinha no corpo da casa, o uso de instrumentos de madeira na culinária e ainda a influência da eletricidade nos hábitos alimentares da sociedade do final do século XIX. O projeto demonstra por meio de textos e ilustrações a importância da comida na formação da sociedade paulista e apresenta suas origens e todo o processo que passou para ser tão popular em nossas mesas.
E há, claro, também receitas. Muitas receitas que corriam o risco de desaparecer ou mofar “em cadernos no fundo dos baús”. Elas são adaptadas ao nosso tempo – como a substituição de banha de porco por óleo vegetal – para facilitar a concretização destas imagens do passado paulista. Fotos completam as receitas, aprimorando o gosto de memória e tradição objetivado pelo projeto.
Nos 400 anos percorridos por Rosa, fundem-se temperos e modos de preparo, muda-se a forma de apresentação dos pratos e os utensílios a eles associados. Virado à paulista, bolinhos de chuva, cuscuz à paulista, pastel, frango caipira, galinhada, pernil com farofa. Somente a menção a estes pratos já evoca aromas e a lembrança de tropeiros, bandeirantes, caipiras e as fazendas de café. Ecos de muitas lembranças que tomam forma neste trabalho e possibilitam a compreensão da história do cotidiano das famílias paulistas.


Sobre o autor – Rosa Belluzzo é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, pós-graduada em Cooperação Cultural Ibero-americana pela Universidade de Barcelona e pesquisadora na área de antropologia cultural e história da alimentação. Ganhou o Prêmio Jabuti em 1999 pelo livro Cozinha dos imigrantes – memórias e receitas e o Gourmand World Cookbook Awards 2004 pela obra Sabores da América – Cuba, Jamaica, Martinica e México.
Título: São Paulo: memória e sabor
Autora: Rosa BelluzzoNúmero de páginas: 120Formato: 23,5 x 24,5 cm
Preço: R$ 70
ISBN: 978-85-71390-883-2


Os livros da Fundação Editora da Unesp podem ser adquiridos pelo site: http://www.editoraunesp.com.br/ ou telefone (11) 3242-7171.

José Saramago:a consistência dos sonhos




Para quem procura um programa cultural, O Instituto Tomie Ohtake oferece a mostra José Saramago:a consistência dos sonhos, gratuitamente.


Organizada e produzida pela Fundação César Manrique, com a colaboração da Fundação José Saramago, a exposição, patrocinada no país pela Mapfre, foi exibida anteriormente na ilhaLanzarote, nas Ilhas Canárias, e na capital portuguesa, no final de 2007 e em meados de 2008 respectivamente.


Com curadoria de Fernando Gómez Aguilera, diretor da FundaçãoCésar Manrique, José Saramago: a consistência dos sonhos, dedicada ao Prêmio Nobel de Literatura (1998), analisa obra e vida do escritor tanto da perspectiva de sua transcendência no mundo da literatura universal como de sua dimensão sociopolítica. Concebida por ocasião do 85º aniversário do autor de Ensaio sobre a Cegueira, a mostraé resultado de dois anos de intenso trabalho de investigação, não apenas desde o momento do reconhecimento internacional, a partir de 1982, mas também abordando períodos menos conhecidos de sua trajetória.


A exposição reúne em torno de 500 documentos originais, entre eles, poesias inéditas, e outros tantos digitalizados que são apresentados através de um desenho inovador que combina os recursos convencionais com os suportes digitais e audiovisuais, empregando mais de 50 monitores. O abundante material traz obras inéditas, manuscritos, notas pessoais, primeiras edições, traduções, fotografias, vídeos, gravações originais, etc, que traçam a vida literária do escritor, assim como exploram as chaves de seu imaginário.


Seguindo uma ordem cronológica, a mostra é pontuada por quatro instalações desenvolvidas por Charles Sandison especialmente para o projeto. Conhecido internacionalmente desde a sua participação na Bienal de Veneza em 2001, o artista escocês, que vive na Finlândia, a partir de programas de computador criados por ele e utilizados como suporte de sua obra, gera projeções sobre telas ou sobre as paredes (Jangada depedra, Todos os nomes, Manual de pintura e caligrafia e Hermes).


A mostra reúne ainda brasileiros, como Jorge Amado, Nélida Piñon e Caetano Veloso em fotos ao lado de Saramago e ressalta a sua amizade

Instituto Tomie Ohtake
Rua Coropés, 88 - Pinheiros - Oeste.
Telefone: 2245-1900

Quando
De 29/11/08 a 15/fev/2009
Terça a domingo: 11h às 20h
Gratuito

Especialistas mundiais em Machado de Assis disponíveis na internet


Palestras e conferências realizadas durante o Simpósio Internacional Caminhos Cruzados, em 2008: Machado de Assis pela Crítica Mundial estão acessíveis na íntegra


Para marcar o centenário da morte de Machado de Assis, a Universidade Estadual Paulista (Unesp), por meio da Fundação Editora da Unesp e apoio do Ministério da Cultura, realizou em 2008 o Simpósio Internacional Caminhos Cruzados: Machado de Assis pela Crítica Mundial, um ciclo de conferências e debates congregando nomes emblemáticos da crítica machadiana, nacional e inernacional.
Durante cinco dias, mais de duas dezenas de especialistas brasileiros e estrangeiros estiveram reunidos em São Paulo para apresentar diferentes abordagens sobre um dos maiores escritores da literatura brasileira. Agora, a gravação desses encontros está acessível na íntegra pela internet.
O simpósio contou com a presença de pesquisadores internacionais de primeira grandeza, tais como Abel Barros Baptista (Universidade Nova de Lisboa), Amina di Munno (Universidade de Gênova), Dain Borges (Universidade de Chicago), Daphne Patai (Universidade de Massachusetts), Elide Valarini Oliver (Universidade da Califórnia), Hans Ulrich Gumbrecht (Universidade de Stanford), Jean Michel Massa (Universidade de Rénnes 2), Jorge Edwards (Chile – Prêmio Cervantes), Kenneth David Jackson (Universidade de Yale), Paul Dixon (Purdue University), Thomas Straeter (Universidade de Heidelberg), Todd Garth (US Naval Academy) e Victor K. Mendes (Universidade de Massachussets).
Expoentes do cenário brasileiro, como Roberto Schwarz, Alberto Costa e Silva, Antonio Carlos Secchin, Carlos Alberto Vogt, Gilberto Pinheiro Passos, Hélio de Seixas Guimarães, Lúcia Granja, Luiz Dagobert de Aguirra Roncari, Sérgio Paulo Rouanet e Valentim Facioli também estiveram presentes. O escritor Milton Hatoum fez, ainda, uma saudação em nome dos escritores brasileiros.
A cobertura completa do evento está disponível no site: http://www.machadodeassis.unesp.br/

A mulher-esqueleto

Recebemos um belo presente : um conto do povo Inuit.

Hoje, são nossos convidados de honra para relatar uma história que possibilita inúmeras interpretações sobre os movimentos da vida.


A mulher-esqueleto

Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais se lembrasse do que havia sido. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os penhascos, atirando-a ao mar.
Lá, os peixes devoraram sua carne e arrancaram seus olhos. Enquanto jazia no fundo do mar, seu esqueleto rolou muitas vezes com as correntes.
Um dia um pescador veio pescar. Bem, na verdade, em outros tempos costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua colônia e não sabia que os pescadores da região não trabalham ali sob a alegação de que a enseada era mal-assombrada.
O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e se prendeu – logo em quê ! – nos ossos das costelas da mulher-esqueleto. O pescador pensou:
- “Oba, agora peguei um grande de verdade ! Agora peguei um mesmo !” Na sua imaginação, Le já via quantas pessoas esse peixe enorme iria alimentar, quanto tempo sua carne duraria, quanto tempo ele se veria livre da obrigação de pescar. E enquanto ela lutava com esse enorme peso na ponta do anzol, o mar se encapelou com uma espuma agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá embaixo lutava para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. Não importa o que fizesse, ela estava sendo inexoravelmente arrastada para a superfície, puxada pelos ossos das próprias costelas.
O pescador havia se voltado para recolher a rede e, por isso, não viu a cabeça calva surgir acima das ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas do crânio; não viu os crustáceos nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado que estava, já havia chegado à superfície e caía suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos.
- Agh! – gritou o homem, e seu coração afundou até os joelhos, seus olhos se esconderam apavorados no fundo da cabeça e suas orelhas arderam num vermelho forte. – Agh! – berrou ele, soltando-a da proa com o remo e começando a remar loucamente na direção da terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou ainda mais assustado pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o tempo todo até a praia. Não importava de que jeito ele desviasse o caiaque, ela continuava ali atrás. Sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e seus braços se agitavam como se quisessem agarra-lo para levá-lo para as profundezas.
- Aaaggggghhhh! – uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um salto ele estava Dora da embarcação e saía correndo agarrado à vara de pescar. E o cadáver branco da mulher-esqueleto, ainda preso à linha de pescar, vinha aos solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela o acompanhou. Ele atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que havia deixado secar , rachando-a em pedaços com as passadas dos seus mukluks.
O tempo todo ela continuou atrás dele, na verdade era arrastada. E logo começou a comer, porque há muito, muito tempo não se saciava. Finalmente, o homem chegou ao seu iglu, enfiou-se direto no túnel e, quatro, engatinhou de qualquer jeito para dentro. Ofegante e soluçante, ele ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é, seguro, graças aos Deuses, Raven, é, graças a Raven, é, e também à todo-generosa Sedna, em segurança, afinal.
Imaginem quando ele acendeu sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela – aquilo – jogada num monte no chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro, um joelho preso nas costelas, um pé por cima do cotovelo. Mais tarde ele não saberia dizer o que realmente aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado suas feições; talvez fosse o fato de ele ser um homem solitário. Mas sua respiração ganhou um quê de delicadeza, bem devagar ele estendeu as mãos encardidas e, falando baixinho como a mãe fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar.
- Oh, na, na, na. – Ele primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos. – Oh, na,na, na. – Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que os ossos da Mulher-esqueleto eram iguaiszinhos aos de um ser humano.
Ele procurou sua pederneira na bainha de couro e usou um pouco do próprio cabelo para acender mais um foguinho. Ficou olhando para ela de vez em quando enquanto passava óleo na preciosa madeira da sua vara de pescar e enrolava novamente sua linha de seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra – não tinha coragem – para que o caçador não a levasse lá para fora e a jogasse lá em baixo nas pedras , quebrando totalmente seus ossos.
O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava sonhando. Às vezes, quando os seres humanos dormem, acontece de uma lágrima escapar do olho de quem sonha. Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas sabemos que ou é um sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o homem.
A Mulher-esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do fogo, e de repente ela sentiu uma sede daquelas. Ela se aproximou do homem que dormia, rangendo e retinindo, e pôs a boca junto à lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela bebeu, bebeu e bebeu até saciar sua sede de tantos anos.
Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homem que dormia e retirou seu coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou a batucar dos dois lados do coração: bom, bomm !...Bom, Bomm !
Enquanto marcava o ritmo, ela começou a cantar em voz alta.
- Carne, carne, carne! Carne, carne, carne! – Enquanto mais cantava, mais seu corpo se revestia de carne. Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e mãos boas e gordas. Ela cantou para ter a divisão entre as pernas e seios compridos o suficiente para se enrolarem e dar calor, e todas as coisas de que as mulheres precisam.
Quando estava pronta, ela também cantou para despir o homem que dormia e se enfiou na cama com ele, a pele de um tocando o outro. Ela devolveu o grande tambor, o coração, ao corpo dele, e foi assim que acordaram abraçados um ao outro, enredados da noite juntos, agora de outro jeito, de um jeito bom e duradouro.
As pessoas que não conseguem se lembrar de como aconteceu sua primeira desgraça dizem que ela e o pescador foram embora e sempre foram bem alimentados pelas criaturas que ela conheceu na sua vida debaixo d’água. As pessoas garantem que é verdade e que é só isso o que sabem.

História do povo Inuit (aborígenes do Canadá)

Clarissa Pinkola Estés disse o seguinte: “Essa história é uma imagem adequada para o problema do amor moderno, o medo da natureza da vida-morte-vida, em especial do aspecto morte. Em grande parte da cultura ocidental, o personagem original da natureza da morte foi encoberto por vários dogmas e doutrinas até o ponto em que se separou de vez da sua outra metade, a vida. Fomos ensinados, equivocadamente, a aceitar a forma mutilada de um dos aspectos mais básicos da natureza selvagem. Aprendemos que a morte sempre acompanhada de mais morte. Isso simplesmente não é verdade. A morte está sempre no processo de incubar uma vida nova. Quando nossa existência foi retalhada até os ossos.
Em vez de considerar os arquétipos de morte e da vida como opostos, devemos encará-los juntos como o lado esquerdo e o direito de um único pensamento. É fato que dentro de um único relacionamento amoroso existem muitos finais. Mesmo assim, de algum modo e em algum ponto nas delicadas camadas do ser criado quando duas pessoas se amam , existe um coração e um alento. Enquanto um lado do coração se esvazia, o outro se enche. Quando uma respiração termina, outra se inicia
.”

Carteira de identidade


Registra-me!

sou árabe

sou árabe

número de minha identidade é cinqüenta mil

tenho oito filhos

e o nono... virá logo depois do verão!

vais te irritar por acaso?

Registra-me!

sou árabe

trabalho com meus companheiros de luta

em uma pedreira

tenho oito filhos

arranco pedras

o pão, as roupas, os cadernos

e não venho mendigar em tua porta

e não me dobro

diante das lajes de teu umbral

vais te irritar por acaso?

Registra-me!

sou árabe

meu nome é muito comum

e sou paciente

em um país que ferve de cólera

minhas raízes...

fixadas antes do nascimento dos tempos

antes da eclosão dos séculos

antes dos ciprestes e oliveiras

antes do crescimento vegetal

meu pai... da família do arado

e não dos senhores do Nujub¹

e meu avô era camponês

sem árvore genealógica

minha casa

uma cabana de guarda

de canas e ramagens

satisfeito com minha condição

meu nome é muito comum

Registra-me

sou árabe

sou árabe

cabelos... negros

olhos... castanhos

sinais particulares

um kuffiah² e uma faixa na cabeça

as palmas ásperas como rochas

arranharam as mãos que estreitam

e amo acima de tudo

o azeite de oliva e o tomilho

meu endereço

sou de um povoado perdido... esquecido

de ruas sem nome

e todos os seus homens... no campo e na pedreira

amam o comunismo

vais te irritar por acaso?

Registra-me

sou árabe

tu me despojaste dos vinhedos de meus antepassados

e da terra que cultivava

com meus filho

se não os deixastes

nem a nossos descendentes

mais que estes seixos

que nosso governo tomará também

como se diz

vamos!

escreve

bem no alto da primeira página

que não odeio os homens

que eu não agrido ninguém

mas... se me esfomeiam

como a carne de quem me despoja

e cuidado... cuida-te

de minha fome

e minha cólera.


Poeta Palestino Mahmoud Darwich (1941-2008)

1 Célebre tribo da Arábia

2 Lenço com desenhos quadriculados, usado para cobrir a cabeça e que tornou-se símbolo nacional palestino pela liberdade e independência.

Originariamente, esse lenço é usado pelos camponeses para protegerem a cabeça durante o trabalho no campo.

A lenda dos cinco mais cinco


Em nome de Alláh, clemente e misericordioso...

Afirmam os matemáticos, asseguram os pacientes calculistas, que a soma cinco mais cinco é sempre constante e igual a dez. Por Alláh, o Exaltado ! Que deplorável ingenuidade! Muitos casos há, posso garantir, em que a conta de cinco mais cinco oferece resultados que vão muito além do total previsto pelos crédulos e fantasiosos algebristas.
Como pode ser isso? – perguntará, certamente, o leitor sempre alerta para cooperar com a verdade. Como pode isso?
Cabe-me esclarecer a dúvida e restabelecer o prestígio da aritmética narrando um singular episódio ocorrido no reinado do famoso califa Al-Mutawakil, que a história, sempre severa em seus julgamentos, inclui entre os mais gloriosos soberanos do País dos Árabes.
Al-Mutawakil (que Alláh o tenha em sua paz!) chamou um dia o seu digno vizir Calil Sadek e disse-lhe:
- Minha esposa, Djohar, completa amanhã o seu vigésimo terceiro aniversário. Quero surpreendê-la e encantá-la com um presente original e valioso, Iallah! Pretendo mimosear Djohar com um adereço feito de pérolas. Irás, agora mesmo, ao suque dos mercadores e procurarás, entre os joalheiros, aquele que tiver as gemas mais raras para vender.
O honrado e prestimoso Sadek, inclinando-se diante do seu poderoso amo, respondeu:
- Escuto e obedeço, ó príncipe dos príncipes!
E, sem perda de tempo, partiu para o grande bazar de Bagdá (também chamado suque), onde se reuniam, a partir da primeira prece, os mercadores mais ricos e opulentos da cidade.
A sorte favoreceu o bom vizir do rei. Seguindo as informações de um escriba, conseguiu descobrir um peroleiro damasceno que se dispunha a vender, por preço bastante razoável, pérolas belíssimas, colhidas (dizia ele) entre as ondas revoltas do mar de Omã.
Uma hora depois, o prestativo Sadek, seguido do peroleiro, ingressava no divã real, Isto é, na sala de audiência do califa.
Imensa foi a satisfação com que Al-Mutawakil recebeu seu insigne ministro:
- É esse, ó Sadek, o mercador que vende pérolas?
Enquanto fazia essa pergunta, o califa observava, com discreta curiosidade, o peroleiro, correndo-o com o olhar da cabeça aos pés. O sírio era um homem alto, de meia-idade, ombros largos, rosto redondo e pequenos olhos vivos. Usava barba bem cuidada e vestia-se com a sobriedade de uma pessoa fina e de bom gosto. Além de larga faixa, característica dos xeques, ostentava um turbante de seda cor de tâmara com frisos brancos. Mantinha, sob o braço esquerdo, pesada bolsa de couro.
- Emir dos crentes! – informou o vizir Sadek, com voz pausada -, este damasceno, segundo informações que colhi, é pessoa de bem e goza de bom conceito no suque dos mercadores. Traz da velha Damasco, seu berço, uma coleção de pérolas e deseja vender essa preciosidade por preço bem razoável. É possível que a mercadoria desse rico peroleiro possa agradar ao vigário de Alláh, nosso amo e senhor!
Al-Mutawakil (assim diziam os seus biográfos) não era homem que levasse indecisões na garupa de seu camelo; voltou-se, pois, para o xeique do turbante cor de tâmara e assim falou:
- Diz-me teu nome, ó irmão dos árabes! Mostra-me as tuas pérolas e faze-me conhecer o preço que pretendes auferir a tua mercadoria.
Interpelado desse modo pelo rei, o mercador sírio ergueu o rosto e proferiu bem alto, placidamente, o Salam dos caravaneiros:

- Que Alláh, o Exaltado, coloque sob os pés do príncipe o tapete da paz e a areia clara da facilidade e da glória! Melil elbilad el-Kabir! (salve o grande rei do país!) Chamo-me Elias Saud Batah, mas os homens da minha terra apelidaram-me o “Xeique dos imprevistos”, pois sei resolver de maneira diferente e imprevisível os pequenos e grandes problemas da vida. Aqui estão, ó sucesso do profeta, as pérolas que desejo vender.
Descerrou o mercador a larga bolsa e retirou duas pequenas caixas de madeira. Abertas as caixas, o rei não ocultou o seu deslumbramento. Cada uma delas, sobre um fundo de veludo roxo, continha cinco pérolas enormes de impecável beleza.
- As cinco pérolas – informou o sírio apontado para uma das caixas – que se acham nesta caixa amarela são verdadeiras. Valem um tesouro e são dignas da virtuosa esposa de nosso generoso e querido califa. As outras, que se acham na caixa escura, tão lindas como as outras, são falsas! Inteiramente falsas! Nesta original coleção de dez pérolas, é difícil, quase impossível talvez, ao mais experimentado perito, distinguir uma pérola de uma verdadeira, pois as ilegítimas apresentam requintes de perfeição, ao passo que nas autênticas percebemos, depois de acurado exame, pequeninas manchas e ligeiros senões. E isso acontece, ó rei do tempo, porque a verdade, em sua singela, tem muitas vezes a aparência da impostura e da fraude, ao posso que a mentira, para ilaquear a boa-fé, reveste-se com todas as cores da autenticidade e da exatidão.
- E quanto queres, ó Xeique dos Imprevistos, pelas tuas pérolas falsas e verdadeiras? – indagou com impaciência o califa.
O mercador, depois de refletir durante alguns instantes, assim falou:
- Cada pérola verdadeira custa apenas dez dinares; cada pérola falsa custará quinhentos dinares. Mas eu só venderei as cinco legítimas àqueles que adquirirem, também, as cinco imitações.
Al-Mutawakil, ao ouvir aquela desconchavada proposta, cruzou um sorriso. E, com os olhos firmes, meio perplexos:
- Pela memória do nosso Profeta, ó mercador de Damasco! Ualalu ! É bem estranho que procures vender as falsas cinqüenta vezes mais caras que a verdadeira. O certo, o justo, o crucial seria que as pérolas autênticas custassem quinhentos ou mil dinares cada uma e que as ilegítimas fossem vendidas, em conjunto, por meia dúzia de moedas!
- Peço perdão, ó rei dos árabes – volveu em tom de cerimônia o mercador. – Vejo-me forçado a discordar de vosso respeitável parecer. A longa experiência da vida ensinou-me que, na realidade, o homem paga sempre, pelo que é enganoso e falso muito mais do que despende por aquilo que é verdadeiro e sincero. Um amigo falso, por exemplo, custa-nos caro, ao passo que um amigo leal e dedicado não nos causa dissabores nem prejuízos. O jovem que faz um casamento falso arrepende-se, paga as intermináveis amarguras da existência o passo errado que a ilusão de um momento o levou a praticar; aquele que escolhe uma boa esposa e realiza um matrimônio acertado e feliz prospera e enriquece. Ainda desta vez o falso custou caro. O verdadeiro deixou a impressão de não ter custado meio cequim em relação ao lucro que proporcionou. Baseado em tais argumentos, deliberei fixar para as minhas pérolas preços bem diversos, e esses preços, ao espírito menos avisado, podem parecer desconexos: as falsas custam cinqüenta vezes mais caro que as verdadeiras! Faço, nas minhas transações, a imitação exata da vida!
Al-Mutawakil, arguto e inteligente, percebeu que a intenção do mercador era fazer-se diferente e original. Queria justificar o apelido “xeique dos imprevistos”. E resolveu mostrar ao damasco que ele também, embora califa, prestigioso e rico, não seria facilmente vencido no largo terreno da bizarrice e da extravagância.
Disse, pois, com voz grave, ao peroleiro:
- Aceito a tua proposta. Receberás do meu tesoureiro o preço que acabas de exigir.
Uma nova personagem vai ingressar nesta história. Trata-se do intrigante Ali Fares Neman, tesoureiro de Al-Mutawakil. Chamado pelo califa, o novo vizir do tesouro compareceu ao divã, fez as contas e declarou que o mercador devia receber dois mil, quinhentos e cinqüenta dinares. As moedas foram contadas e entregues ao vendedor de pérolas.
Ali Fares Neman, avarento e mau, trazia sempre na lama uma pequena dose de veneno. Aproximou-se solerte do califa e disse-lhe, muito em segredo, qualquer coisa ao ouvido.
“Que farei agora?”, pensou o califa. E, como não lhe ocorresse, no momento, uma decisão que lhe parecesse prudente e conciliadora, resolveu interpelar o damasceno:
- Infelizmente, meu amigo, depois de ouvidos os dois peritos em pérolas, a tua situação é delicada. Se eu aceitar, como certo, o parecer do hábil Sabaga, cairá sobre ti grave acusação. Ingrata será a tua sorte. Jamais deixei impune, sob o céu de Bagdá, os impostores e intrujões. Admitido o voto do venerando Maluf, homem sensato e judicioso, ficará ainda assim, pairando sobre o teu nome, a triste sombra da mentira e da leviandade. Ofereces ao califa dos crentes dez pérolas verdadeiras e procuras falsear a verdade, deslustrar esta corte, zombar da nossa magnanimidade, fazendo crer que cinco eram falsas! Exijo, pois, que sejas leal e sincero. Que há de certo e positivo em toda essa confusão?
Ao ouvir as palavras do califa e pensando bem na gravidade da situação, o mercador sírio assim falou:
- Acabais, ó príncipe do Islã, de apelar para a minha sinceridade. Faço da sinceridade ponto de honra da minha vida. A sinceridade é sempre louvável, mas cumpre que seja delicada e prudente. Falar com sinceridade sobre coisas que devemos calar é ser brutal e descaridoso. Logo que a sinceridade ofende e magoa, muda de nome e vira estupidez. A sinceridade é a maneira suave de dizer verdades que devem ser ditas, sem melindrar. Tem a perfeita sinceridade limites que a boa educação torna intransponíveis. Para atender, pois, ao vosso justo desejo, vou expor, com a maior sinceridade, o que penso sobre este caso sem me afastar uma linha da lealdade e da lisura. Vejo, agora, diante de mim, ó emir dos árabes, três homens notáveis: o vosso tesoureiro Ali Fares Neman e os dois joalheiros de maior renome em nosso país – Sabaga, o cauteloso; e Maluf, o sem rival. Cada um desses muçulmanos agiu, neste particular episódio das pérolas, inspirado pela maneira pessoal com que procura encarar a própria vida. Não os acuso: sobre eles não atiro as flechas da culpa; Julgo-o apenas. O tesoureiro Neman é homem desconfiado. Em seu rosto pálido notam-se as sete rugas da antipatia. Suspeita de tudo e de todos. Tem o coração cortado e recortado pelos espinhos do receio e da desconfiança. Lamento-o. Será sempre um infeliz. A vida para ele será a eterna tortura entre o medo dos homens e a descrença de Deus. Por não confiar jamais no outros, é incapaz de confiar em si próprio. O honrado Ali Fares Neman, a meu ver, tomou um roteiro errado pelos caminhos da vida. Só aqueles que confiam podem ser felizes. Precisamos confiar nos amigos, nos homens de bem, em nossos chefes e superiores, naqueles, enfim, que agem com lisura e retidão. Cumpre-nos confiar nas pessoas dignas que jamais deram motivos para suspeitas e desconfianças. E ainda mais: confiar no amor, confiar na bondade, confiar em Deus!
Neste ponto o peroleiro fez uma pequena pausa, e logo retomando a palavra, disse:
- Ali está o rico joalheiro Sabaga. Vejamos o seu papel neste caso. Conheço-o muito bem, embora seja eu para ele um desconhecido. É um pessimista. Em tudo, e em todos, só vê defeitos, imperfeições, vícios e deformidades. Para Sabaga a perfeição, a pureza, e o requinte não existem. É cego para as qualidades que adornam as criaturas, mas tem olhos de lince para descobrir manchar e senões. Se lê um trecho de prosa, ou um verso, não para admirar a idéia, mas para sublinhar negligências. Não louvo a maneira de agir daqueles que procedem como Sabaga. A vida é curta: apreciemos com alegria o que há de belo e esqueçamos as máculas e deformidades. A tendência pessimista de seu espírito leva-o a admitir como falsas pérolas legítimas, verdadeiras. Que Alláh me livre desse homem injusto e cruel.
E prosseguiu o damasceno:
- Já bem diverso de Sabaga é o velho Maluf. Tem bom coração; é simples; encara a vida com benignidade e otimismo. Para Maluf tudo é lindo, gracioso e puro. O bondoso joalheiro só vê qualidades. A indulgência de seu espírito não permite que ele perceba os tristes defeitos e as deploráveis mazelas. Para ele tudo é excelente e nobre. O homem equilibrado será incapaz de agir como Sabaga, o invejoso, que só vê falhas e labéus, mas evita proceder como Maluf, que só reconhece os bons e nobres predicados. Sejamos justos procedendo com nobreza, exaltando também as qualidades e os legítimos valores.
- Basta ! – exclamou Al-Matawakil interrompendo o mercador. – Por Alláh, Basta ! Aceito, por completo, a tua explicação. Acredito na sinceridade dos teus propósitos e na lisura de tuas palavras. Confio em ti, pois não vejo motivos para alimentar receios e desconfianças. Estou convencido de que adquiri de ti, ó honrado e talentoso damasceno, dez pérolas belíssimas, sendo cinco verdadeiras e cinco falsas ! E ao obter de ti as dez gemas fulgurantes, recebi, também, um número, para mim incontrolável, de velos preciosos ensinamentos que serão como luzeiros eternos pelos longos e tortuosos caminhos de Alláh !
Como vê, meu amigo, da soma de cinco mais cinco (diz a lenda) resultou um número que o imaginoso Al-Mutawakil, emir dos crentes, com toda a sinceridade, não conseguiu avaliar.
Uassalã !
Os melhores contos, Malba Tahan

Os quatro rabinos


Uma noite quatro rabinos receberam a visita de um anjo que os acordou e os levou para a Sétima Abóbada do Sétimo Céu. Ali eles contemplaram a sagrada Roda de Ezequiel.
Em algum ponto da descida do Pardes, Paraíso, para a Terra, um rabino, depois de ver tanto esplendor, enlouqueceu e passou a perambular espumando de raiva até o final dos seus dias.
O segundo rabino teve uma atitude extremamente cínica: “- Ah, eu só sonhei com a Roda de Ezequiel, só isso. Nada aconteceu de verdade.”
O terceiro rabino falava incessantemente no que havia visto, demonstrando sua total obsessão. Ele pregava e não parava de falar no projeto da Roda e no que tudo aquilo significava... E dessa forma ele se perdeu e traiu sua fé.
O quarto rabino, que era poeta, pegou um papel e uma flauta, sentou-se junto à janela e começou a compor uma canção atrás da outra elogiando a pomba do anoitecer, sua filha no berço e todas as estrelas do céu. E daí em diante ele passou a viver melhor.

Conto extraído da obra: Mulheres que correm com os lobos, Clarrisa Pinkola Estés, Ed. Rocco.
Foto: Marcel Nascimento, Artesanatos criado pelas mulheres do projeto De Pano.

O Programa Fábricas de Cultura


O Fábricas de Cultura (Programa Cultura e Cidadania para a Inclusão Social – PCCIS) realiza ações artístico-culturais destinadas a crianças e jovens, entre 7 e 19 anos, moradores em nove distritos com baixos indicadores sociais da Capital. O Programa foi implantado pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, que obteve financiamento do BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento, além de apoio do Fundo Especial Japonês.


As regiões de atuação foram escolhidas a partir de pesquisa realizada pela Fundação SEADE, que desenvolveu especialmente para este trabalho o Índice de Vulnerabilidade Juvenil - IVJ, composto por indicadores que influem nas condições de vida dos jovens. Os distritos selecionados foram: Cidade Tiradentes, Itaim Paulista, Sapopemba e Vila Curuçá (zona leste); Brasilândia, Cachoeirinha e Jaçanã (zona norte); Capão Redondo e Jardim São Luís (zona sul).


Nove Centros Fábricas de Cultura serão construídos, um em cada distrito: esses espaços culturais, com cerca de quatro mil metros quadrados, foram concebidos para abrigar e promover formação em diversas áreas artístico-culturais, contando com salas especiais de teatro, dança, música, circo, artes visuais, multimeios e biblioteca.


Para fortalecer e enraizar o Programa nas comunidades, as ações são feitas por intermédio de ONGs e associações socioculturais daquelas localidades, as chamadas EAs (Entidades Associadas). Neste sentido de força conjunta, a cooperação entre Estado e Município viabiliza parcerias com os CEUs (Centros Educacionais Unificados) e o CCJ (Centro Cultural da Juventude) para a realização da programação.


As áreas administrativa, contábil, jurídica, institucional, técnico-cultural, programática, de produção e de acompanhamento e avaliação contam com a Unidade de Gerenciamento do Programa - UGP. Nesta estrutura estão ainda os Agentes Culturais — um profissional para cada um dos nove distritos —, que coordenam localmente todas as ações que formam a rede sociocultural do Programa, integrando as Entidades Associadas, as famílias dos participantes e as demais instituições parceiras.
http://www.fabricasdecultura.sp.gov.br/