Em nome de Alláh, clemente e misericordioso...
Afirmam os matemáticos, asseguram os pacientes calculistas, que a soma cinco mais cinco é sempre constante e igual a dez. Por Alláh, o Exaltado ! Que deplorável ingenuidade! Muitos casos há, posso garantir, em que a conta de cinco mais cinco oferece resultados que vão muito além do total previsto pelos crédulos e fantasiosos algebristas.
Como pode ser isso? – perguntará, certamente, o leitor sempre alerta para cooperar com a verdade. Como pode isso?
Cabe-me esclarecer a dúvida e restabelecer o prestígio da aritmética narrando um singular episódio ocorrido no reinado do famoso califa Al-Mutawakil, que a história, sempre severa em seus julgamentos, inclui entre os mais gloriosos soberanos do País dos Árabes.
Al-Mutawakil (que Alláh o tenha em sua paz!) chamou um dia o seu digno vizir Calil Sadek e disse-lhe:
- Minha esposa, Djohar, completa amanhã o seu vigésimo terceiro aniversário. Quero surpreendê-la e encantá-la com um presente original e valioso, Iallah! Pretendo mimosear Djohar com um adereço feito de pérolas. Irás, agora mesmo, ao suque dos mercadores e procurarás, entre os joalheiros, aquele que tiver as gemas mais raras para vender.
O honrado e prestimoso Sadek, inclinando-se diante do seu poderoso amo, respondeu:
- Escuto e obedeço, ó príncipe dos príncipes!
E, sem perda de tempo, partiu para o grande bazar de Bagdá (também chamado suque), onde se reuniam, a partir da primeira prece, os mercadores mais ricos e opulentos da cidade.
A sorte favoreceu o bom vizir do rei. Seguindo as informações de um escriba, conseguiu descobrir um peroleiro damasceno que se dispunha a vender, por preço bastante razoável, pérolas belíssimas, colhidas (dizia ele) entre as ondas revoltas do mar de Omã.
Uma hora depois, o prestativo Sadek, seguido do peroleiro, ingressava no divã real, Isto é, na sala de audiência do califa.
Imensa foi a satisfação com que Al-Mutawakil recebeu seu insigne ministro:
- É esse, ó Sadek, o mercador que vende pérolas?
Enquanto fazia essa pergunta, o califa observava, com discreta curiosidade, o peroleiro, correndo-o com o olhar da cabeça aos pés. O sírio era um homem alto, de meia-idade, ombros largos, rosto redondo e pequenos olhos vivos. Usava barba bem cuidada e vestia-se com a sobriedade de uma pessoa fina e de bom gosto. Além de larga faixa, característica dos xeques, ostentava um turbante de seda cor de tâmara com frisos brancos. Mantinha, sob o braço esquerdo, pesada bolsa de couro.
- Emir dos crentes! – informou o vizir Sadek, com voz pausada -, este damasceno, segundo informações que colhi, é pessoa de bem e goza de bom conceito no suque dos mercadores. Traz da velha Damasco, seu berço, uma coleção de pérolas e deseja vender essa preciosidade por preço bem razoável. É possível que a mercadoria desse rico peroleiro possa agradar ao vigário de Alláh, nosso amo e senhor!
Al-Mutawakil (assim diziam os seus biográfos) não era homem que levasse indecisões na garupa de seu camelo; voltou-se, pois, para o xeique do turbante cor de tâmara e assim falou:
- Diz-me teu nome, ó irmão dos árabes! Mostra-me as tuas pérolas e faze-me conhecer o preço que pretendes auferir a tua mercadoria.
Interpelado desse modo pelo rei, o mercador sírio ergueu o rosto e proferiu bem alto, placidamente, o Salam dos caravaneiros:
- Que Alláh, o Exaltado, coloque sob os pés do príncipe o tapete da paz e a areia clara da facilidade e da glória! Melil elbilad el-Kabir! (salve o grande rei do país!) Chamo-me Elias Saud Batah, mas os homens da minha terra apelidaram-me o “Xeique dos imprevistos”, pois sei resolver de maneira diferente e imprevisível os pequenos e grandes problemas da vida. Aqui estão, ó sucesso do profeta, as pérolas que desejo vender.
Descerrou o mercador a larga bolsa e retirou duas pequenas caixas de madeira. Abertas as caixas, o rei não ocultou o seu deslumbramento. Cada uma delas, sobre um fundo de veludo roxo, continha cinco pérolas enormes de impecável beleza.
- As cinco pérolas – informou o sírio apontado para uma das caixas – que se acham nesta caixa amarela são verdadeiras. Valem um tesouro e são dignas da virtuosa esposa de nosso generoso e querido califa. As outras, que se acham na caixa escura, tão lindas como as outras, são falsas! Inteiramente falsas! Nesta original coleção de dez pérolas, é difícil, quase impossível talvez, ao mais experimentado perito, distinguir uma pérola de uma verdadeira, pois as ilegítimas apresentam requintes de perfeição, ao passo que nas autênticas percebemos, depois de acurado exame, pequeninas manchas e ligeiros senões. E isso acontece, ó rei do tempo, porque a verdade, em sua singela, tem muitas vezes a aparência da impostura e da fraude, ao posso que a mentira, para ilaquear a boa-fé, reveste-se com todas as cores da autenticidade e da exatidão.
- E quanto queres, ó Xeique dos Imprevistos, pelas tuas pérolas falsas e verdadeiras? – indagou com impaciência o califa.
O mercador, depois de refletir durante alguns instantes, assim falou:
- Cada pérola verdadeira custa apenas dez dinares; cada pérola falsa custará quinhentos dinares. Mas eu só venderei as cinco legítimas àqueles que adquirirem, também, as cinco imitações.
Al-Mutawakil, ao ouvir aquela desconchavada proposta, cruzou um sorriso. E, com os olhos firmes, meio perplexos:
- Pela memória do nosso Profeta, ó mercador de Damasco! Ualalu ! É bem estranho que procures vender as falsas cinqüenta vezes mais caras que a verdadeira. O certo, o justo, o crucial seria que as pérolas autênticas custassem quinhentos ou mil dinares cada uma e que as ilegítimas fossem vendidas, em conjunto, por meia dúzia de moedas!
- Peço perdão, ó rei dos árabes – volveu em tom de cerimônia o mercador. – Vejo-me forçado a discordar de vosso respeitável parecer. A longa experiência da vida ensinou-me que, na realidade, o homem paga sempre, pelo que é enganoso e falso muito mais do que despende por aquilo que é verdadeiro e sincero. Um amigo falso, por exemplo, custa-nos caro, ao passo que um amigo leal e dedicado não nos causa dissabores nem prejuízos. O jovem que faz um casamento falso arrepende-se, paga as intermináveis amarguras da existência o passo errado que a ilusão de um momento o levou a praticar; aquele que escolhe uma boa esposa e realiza um matrimônio acertado e feliz prospera e enriquece. Ainda desta vez o falso custou caro. O verdadeiro deixou a impressão de não ter custado meio cequim em relação ao lucro que proporcionou. Baseado em tais argumentos, deliberei fixar para as minhas pérolas preços bem diversos, e esses preços, ao espírito menos avisado, podem parecer desconexos: as falsas custam cinqüenta vezes mais caro que as verdadeiras! Faço, nas minhas transações, a imitação exata da vida!
Al-Mutawakil, arguto e inteligente, percebeu que a intenção do mercador era fazer-se diferente e original. Queria justificar o apelido “xeique dos imprevistos”. E resolveu mostrar ao damasco que ele também, embora califa, prestigioso e rico, não seria facilmente vencido no largo terreno da bizarrice e da extravagância.
Disse, pois, com voz grave, ao peroleiro:
- Aceito a tua proposta. Receberás do meu tesoureiro o preço que acabas de exigir.
Uma nova personagem vai ingressar nesta história. Trata-se do intrigante Ali Fares Neman, tesoureiro de Al-Mutawakil. Chamado pelo califa, o novo vizir do tesouro compareceu ao divã, fez as contas e declarou que o mercador devia receber dois mil, quinhentos e cinqüenta dinares. As moedas foram contadas e entregues ao vendedor de pérolas.
Ali Fares Neman, avarento e mau, trazia sempre na lama uma pequena dose de veneno. Aproximou-se solerte do califa e disse-lhe, muito em segredo, qualquer coisa ao ouvido.
“Que farei agora?”, pensou o califa. E, como não lhe ocorresse, no momento, uma decisão que lhe parecesse prudente e conciliadora, resolveu interpelar o damasceno:
- Infelizmente, meu amigo, depois de ouvidos os dois peritos em pérolas, a tua situação é delicada. Se eu aceitar, como certo, o parecer do hábil Sabaga, cairá sobre ti grave acusação. Ingrata será a tua sorte. Jamais deixei impune, sob o céu de Bagdá, os impostores e intrujões. Admitido o voto do venerando Maluf, homem sensato e judicioso, ficará ainda assim, pairando sobre o teu nome, a triste sombra da mentira e da leviandade. Ofereces ao califa dos crentes dez pérolas verdadeiras e procuras falsear a verdade, deslustrar esta corte, zombar da nossa magnanimidade, fazendo crer que cinco eram falsas! Exijo, pois, que sejas leal e sincero. Que há de certo e positivo em toda essa confusão?
Ao ouvir as palavras do califa e pensando bem na gravidade da situação, o mercador sírio assim falou:
- Acabais, ó príncipe do Islã, de apelar para a minha sinceridade. Faço da sinceridade ponto de honra da minha vida. A sinceridade é sempre louvável, mas cumpre que seja delicada e prudente. Falar com sinceridade sobre coisas que devemos calar é ser brutal e descaridoso. Logo que a sinceridade ofende e magoa, muda de nome e vira estupidez. A sinceridade é a maneira suave de dizer verdades que devem ser ditas, sem melindrar. Tem a perfeita sinceridade limites que a boa educação torna intransponíveis. Para atender, pois, ao vosso justo desejo, vou expor, com a maior sinceridade, o que penso sobre este caso sem me afastar uma linha da lealdade e da lisura. Vejo, agora, diante de mim, ó emir dos árabes, três homens notáveis: o vosso tesoureiro Ali Fares Neman e os dois joalheiros de maior renome em nosso país – Sabaga, o cauteloso; e Maluf, o sem rival. Cada um desses muçulmanos agiu, neste particular episódio das pérolas, inspirado pela maneira pessoal com que procura encarar a própria vida. Não os acuso: sobre eles não atiro as flechas da culpa; Julgo-o apenas. O tesoureiro Neman é homem desconfiado. Em seu rosto pálido notam-se as sete rugas da antipatia. Suspeita de tudo e de todos. Tem o coração cortado e recortado pelos espinhos do receio e da desconfiança. Lamento-o. Será sempre um infeliz. A vida para ele será a eterna tortura entre o medo dos homens e a descrença de Deus. Por não confiar jamais no outros, é incapaz de confiar em si próprio. O honrado Ali Fares Neman, a meu ver, tomou um roteiro errado pelos caminhos da vida. Só aqueles que confiam podem ser felizes. Precisamos confiar nos amigos, nos homens de bem, em nossos chefes e superiores, naqueles, enfim, que agem com lisura e retidão. Cumpre-nos confiar nas pessoas dignas que jamais deram motivos para suspeitas e desconfianças. E ainda mais: confiar no amor, confiar na bondade, confiar em Deus!
Neste ponto o peroleiro fez uma pequena pausa, e logo retomando a palavra, disse:
- Ali está o rico joalheiro Sabaga. Vejamos o seu papel neste caso. Conheço-o muito bem, embora seja eu para ele um desconhecido. É um pessimista. Em tudo, e em todos, só vê defeitos, imperfeições, vícios e deformidades. Para Sabaga a perfeição, a pureza, e o requinte não existem. É cego para as qualidades que adornam as criaturas, mas tem olhos de lince para descobrir manchar e senões. Se lê um trecho de prosa, ou um verso, não para admirar a idéia, mas para sublinhar negligências. Não louvo a maneira de agir daqueles que procedem como Sabaga. A vida é curta: apreciemos com alegria o que há de belo e esqueçamos as máculas e deformidades. A tendência pessimista de seu espírito leva-o a admitir como falsas pérolas legítimas, verdadeiras. Que Alláh me livre desse homem injusto e cruel.
E prosseguiu o damasceno:
- Já bem diverso de Sabaga é o velho Maluf. Tem bom coração; é simples; encara a vida com benignidade e otimismo. Para Maluf tudo é lindo, gracioso e puro. O bondoso joalheiro só vê qualidades. A indulgência de seu espírito não permite que ele perceba os tristes defeitos e as deploráveis mazelas. Para ele tudo é excelente e nobre. O homem equilibrado será incapaz de agir como Sabaga, o invejoso, que só vê falhas e labéus, mas evita proceder como Maluf, que só reconhece os bons e nobres predicados. Sejamos justos procedendo com nobreza, exaltando também as qualidades e os legítimos valores.
- Basta ! – exclamou Al-Matawakil interrompendo o mercador. – Por Alláh, Basta ! Aceito, por completo, a tua explicação. Acredito na sinceridade dos teus propósitos e na lisura de tuas palavras. Confio em ti, pois não vejo motivos para alimentar receios e desconfianças. Estou convencido de que adquiri de ti, ó honrado e talentoso damasceno, dez pérolas belíssimas, sendo cinco verdadeiras e cinco falsas ! E ao obter de ti as dez gemas fulgurantes, recebi, também, um número, para mim incontrolável, de velos preciosos ensinamentos que serão como luzeiros eternos pelos longos e tortuosos caminhos de Alláh !
Como vê, meu amigo, da soma de cinco mais cinco (diz a lenda) resultou um número que o imaginoso Al-Mutawakil, emir dos crentes, com toda a sinceridade, não conseguiu avaliar.
Uassalã !
Os melhores contos, Malba Tahan
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