Dança, Identidade e Guerra
São necessários muitos anos de audição para captar as constantes alterações rítmicas das músicas orientais, apurado senso do significado do que se está dançando e uma boa dose de conhecimento do que representam os sofrimentos das guerras e os preconceitos na vida do povo árabe****.
Essencialmente feminina essas danças podem ser acompanhadas por homens, com movimentos masculinos, destacando-se o tórax, ombros e braços. A dançarina deve ser soberana, elegante, manter postura antes, durante e depois da apresentação. Ter simpatia, charme e principalmente muita humildade.
Quanto mais experiente for a dançarina mais sucesso faz. A cultura árabe respeita a mulher madura, a exalta e admira, não discrimina a mulher de idade, tem preferência pela mais cheinha, do tipo gostosa, matreira e vaidosa. Em casas noturnas, restaurantes e festas árabes é muito comum homens convidarem as mulheres para dançá-las, é o desafio do homem em provocar a sensualidade da mulher. Um jeito árabe de paquera (flerte), uma vez que os costumes e valores morais da cultura são extremamente rígidos.
O povo árabe é totalmente contra os padrões estéticos do Ocidente, que impõe a mulher ser jovem e magra, tornando a maioria delas infelizes, isto sim é submissão. Os valores espirituais da cultura abominam a vulgaridade, considerando-a ofensiva, enaltece a auto-estima feminina, exalta a virilidade masculina, através de suas músicas e danças com muita sensualidade.
No Brasil em 1979, as danças étnicas árabes foram introduzidas pela mestra palestina Shahrazad Shahid Sharkid iniciando-se assim um trabalho único no mundo através da Raks el Chark. A meta de seu trabalho era a pesquisa e o estudo minucioso do corpo feminino através do registro das mutações ocorridas apartir da aplicação e execução de exercícios de sua elaboração. Havia também no trabalho de Shahrazad uma enorme preocupação com a formação de crianças e adolescentes para dança do ventre, procurando não confundir o trabalho corporal adulto com o infantil, respeitando-se seus espaços e suas mentes cronologicamente viabilizando a aplicação de exercícios de fisioterapia, com o cuidado de não agredir o universo infantil pelo estímulo prematuro para a vida afetiva e sexual.
Estas mutações são parte do infinito trabalho de anatomista da mestra artesã, uma escultora de corpos, sempre com a preocupação de não preterir determinadas partes do corpo, o que normalmente acontece com algumas danças ocidentais, onde para adquirir a desenvoltura exigida é necessário tornar cartesiano o corpo feminino, colocando-o em uma moldura onde todas são iguais.
Toda dança tem, evidentemente, o cunho sagrado, apesar do ocidente frequentemente utilizá-las erroneamente e propositadamente para vender sexo, padrões estéticos e para exploração do corpo da mulher e infantil, profanando os arquétipos religiosos. O homem sempre desejou aquilo que era de Deus e tenta adquirir, através do manto da "commoditização erotizada", tudo aquilo que não consegue obter pela conquista da espiritualização.
Danças Folclóricas e de Raízes
As "Danças Folclóricas e de Raízes" possuem um poder indiscutível de aglutinação, pois constituem a manifestação do comportamento cultural, histórico e social dos indivíduos. Refletem em sua construção coreográfica a soberania, o direito, a dignidade de vida dos povos das mais diferentes etnias, cores e credos, além de contribuir diretamente na socialização e educação de crianças e adolescentes principalmente pelo prazer que proporcionam. Resgata e eleva a auto-estima. Portanto, devemos ter muito respeito por estas manifestações que são verdadeiros alicerces para o desenvolvimento da consciência sócio-ambiental para comunidades, destacando-se a importância de trabalhos em grupos, aparelhando-as com estes importantes instrumentos necessários para a formação do caráter cultural e intelectual, e apurando o senso crítico pela observação e audição.
No artigo do semanário Al-Ahram, o coreógrafo Omar Barghouti discuste o significado da cultura e educação na preservação da identidade nacional e o espírito humano ao mesmo tempo. A criatividade e aprendizado são vitais ao projeto de sobrevivência, argumenta Barghouti, descrevendo como, mesmo sob o cessa fogo, o povo da sua vizinhança de Ramallah precisa de livros, música e jogos; e mesmo nos campos de refugiados, os pais cujas vidas e posses foram dizimadas estão preocupados em restaurar as escolas para seus filhos. Mesmo com esta cidade ocupada e destruída, Omar Barghouti mantém sua atuação na dança.
Barghouti põe esses valores num contexto histórico – os palestinos que foram forçados a fugir de suas casas em 1948 são assombrados por seu fracasso em resistir, ele diz. Ele explica que esse fracasso é atribuído à "consciência limitada" do tempo "a qual nesse contexto entende-se como uma combinação de ignorância, analfabetismo, falta de aptidões essenciais, como também a falta de um sentido claro de identidade. Portanto, cultivar uma tradição de educação e a prática da cultura é a chave para a sobrevivência dos palestinos como um povo: "os palestinos não podem se dar ao luxo de não fazer parte da reabilitação cultural na sua batalha ampla de reconstrução e luta pela emancipação," ele escreve. Neste ensaio comovente, Barghouti nos supre com a imagem da dança como um símbolo da sobrevivência e renovação palestina.
Nossa história sobre as danças étnicas árabes é muito mais longa, mas deixo esta contribuição para a reflexão e conto com todos para acompanharem este resgate da memória ancestral em busca da equidade social, dos valores comunitários e coletivos e, da importância de se construir uma economia justa e equilibrada como foi a dos nossos antepassados, quando a felicidade era pautada por uma "segurança alimentar" ordenada e coordenada pelas forças da natureza - com seus ciclos hidrológicos. Ao cultuar a sensualidade como uma dádiva de Deus e exorcizar o erótico profanado e degradador da natureza humana.
Num tempo em que o ser humano fazia parte do meio ambiente, e não o partia ao meio!
NOTA:
*Raks = dança Charq = leste, oriente. Charqi = oriental , portanto, Raqsa Ach-Charq (ou Ash-Sharq) é Dança do Oriente, Dança do Leste; Raqsa Charqyi = Dança Oriental. Raqsa Ash-Sharq é a pronuncia correta sendo Raqsa Al Sharq, para os egípcios e Raqsa Charkyi para os libaneses. Consulta Carlos Tebecherani Haddad - professor e pesquisador do idioma árabe da Universidade Católica de Santos.
** Belly Danse em francês = bela dança e Belly Dance em inglês = dança do ventre.
***São consideradas semitas todas as tribos beduínas, incluindo-se a etnia hebraica, cuja religião é o judaísmo. Com a migração destas tribos nômades entre outras que se miscigenaram, originam-se os ciganos do ocidente – e com a perseguição dos hebreus no Oriente Médio, advém a expressão "judeu errante", ou seja, refere-se aos judeus que partem em busca de uma terra, uma nação. (Lactho Drom – Michele Ray-Gravas. La Musique des tsiganes du monde de l’inde a l ‘espagne)
****O histórico das tribos beduínas está registrado através da cultura oral. Encontram-se estas narrativas em suas músicas, nas danças, nos contos que passam de pais para filhos, nos livros sagrados como O Alcorão, escrituras Baha’i, na Bíblia, no Talmut etc.. também nos poemas de Rumi, Gibran Kalil Gibran, entre outros poetas árabes e persas. Os cantos beduínos enaltecem o meio ambiente e a mulher, relatam o amor do povo nômade pelos ecossistemas desérticos, suas paixões. A cantora Om Kalthoun expressou com toda essência de sua belíssima voz a história desses povos que encantam o mundo por sua passividade, benevolência e profunda sabedoria milenar. Om Kalthoun morreu cultuada como a "Mãe do Egito". Uma feminista amada e respeitada. Jamais conseguiram fazer-lhe calar a voz!
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