O Canto dos Escravos





Vissungos em Minas Gerais









Em 1929 o professor Aires da Mata Machado Filho coletou um tesouro em São João da Chapada, no coração da Chapada Diamantina, Bahia.

Na terra mais conhecida pelas suas belezas naturais e pela exuberância do cerrado, o filólogo e linguista brasileiro reuniu 65 cantos tradicionais que continham diversas expressões em língua africana, guardados na memória viva dos descendentes dos africanos bantos que trabalharam no garimpo da região.
Na África banto (área cultural ao sul do Deserto do Saara, constituída por uma rede de línguas e culturas afins), a música permeia a maioria das atividades do cotidiano. Canta-se para comer, para trabalhar, para celebrar, para alcançar os ancestrais. Sendo assim, os africanos trazidos para o Brasil e aqui escravizados trouxeram consigo uma miríade de costumes que constituem uma das bases da nossa cultura.
Os cantos de trabalho, especificamente, tem especial importância na resistência e na preservação cultural da matriz africana no Brasil: cantando em suas línguas nativas, os bantos no Brasil encontravam um jeito de expressar a sua inalienável identidade com a África-mãe e vivenciar a liberdade da memória de seus costumes. Muitas palavras da atual Língua Portuguesa do Brasil são diretamente derivadas de palavras africanas.
No caso estudado pelo professor Aires Filho, os cantos recolhidos eram vissungos dos negros bengelas (Angola). “Vissungo”, como nos explica o historiador, cantor, e compositor Nei Lopes no “Novo Dicionário Banto do Brasil”, é uma expressão da língua banto umbundo, derivada da palavra ovisungo que significa “cantiga, cântico”.
As letras e partituras dos vissungos coletados foram publicadas por Aires Filho em 1943 no livro O Negro e o Garimpo em Minas Gerais, tendo recebido por este trabalho o Prêmio “João Ribeiro” da Academia Brasileira de Letras.
Eis que, no ano de 1982, catorze vissungos dos 65 estudados por Aires Filho foram gravados no LP O Canto dos Escravos por um notável time de bambas do samba carioca e paulista: Clementina de Jesus, Tia Doca da Velha Guarda da Portela e Geraldo Filme, referência do samba paulistano.
O Canto dos Escravos ecoa as vozes bengelas que durante muito tempo soaram no garimpo mineiro. Possui um interessante arranjo com apenas voz e percussão, que contribui para o clima de proximidade evocado pelo canto potente dos sambistas.
O disco é um importante trabalho de registro de memória oral, mostrando como diversas manifestações culturais de matriz africana constituem a raiz da cultura popular brasileira.
A boa notícia é que o esgotadíssimo LP de 1982 foi recentemente relançado em CD, inclusive com comentários do próprio Aires Filho no encarte.
É dever de todos lutar pela preservação das tradições afro-brasileiras e da cultura popular.
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Foto: Grupo Catopê de Milho Verde . Foto: Sérgio Amaral

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