No primeiro semestre de 1850, a revista Guanabara publicou três capítulos de Meditação, uma obra inacabada de Gonçalves Dias (1823-1864). O texto, escrito em prosa poética, é hoje praticamente desconhecido, apesar da notável importância histórica: pela primeira vez um escritor do romantismo criticava de forma implacável a sociedade, o Estado e, em especial, o sistema escravista.
Um estudo feito por Wilton José Marques, professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), abriu a discussão sobre esse texto pioneiro do poeta maranhense.
Os resultados da pesquisa – um pós-doutorado realizado com bolsa da FAPESP entre 2002 e 2003 no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – formaram a base para o livro Gonçalves Dias: o poeta na contramão, que acaba de ser publicado com apoio da Fundação na modalidade Auxílio à Pesquisa – Publicações.
De acordo com Marques, o que mais chama a atenção em Meditação, é o fato de escancarar as mazelas sociais do país de forma inédita entre os escritores canônicos românticos naquela época. O eixo central do livro nasceu a partir do texto As ideias fora do lugar, de Roberto Schwartz. Uma das teses do crítico, segundo Marques, sustenta que em meados do século 19 os escritores viviam quase exclusivamente dos favores do governo.
“Os intelectuais brasileiros viviam uma relação de dependência com o Estado. Essa política do favor explica por que a literatura nacional só passou a abordar criticamente o tema da escravidão quando o abolicionismo já dominava o debate nacional”, disse Marques.
Segundo ele, quando Gonçalves Dias publicou Meditação, a literatura romântica praticamente não tinha referências explícitas à escravidão e a violência do sistema não transparecia em nenhuma obra. Os primeiros textos abolicionistas de Castro Alves (1847-1871), por exemplo, só entraram em cena a partir de 1863, quando a discussão já tomava as ruas.
“O texto de Gonçalves Dias é uma crítica ferrenha à escravidão e é incrível que seja tão pouco conhecido. Praticamente não há referências à sua existência. O meu livro procura preencher essa lacuna, discutindo a posição do intelectual em relação ao Estado e a forma como ele se insere na máquina estatal por meio de uma relação de favores”, disse Marques.
Apesar da virulência do texto, Gonçalves Dias não estava isento da “política do favor”. Em 1846, quando começou sua carreira literária e mudou-se para o Rio de Janeiro, o poeta tornou-se funcionário público, trabalhando como professor no Colégio Pedro 2º.
Com a economia baseada na escravidão, o trabalho livre praticamente não existia. O intelectual, assim, não tinha alternativa além de trabalhar e ser remunerado pelo Estado. Os escritores eram obrigados a se resignar a uma espécie de “cumplicidade cabisbaixa”.
“Em um país que tinha 70% da população analfabeta e os livros eram exclusividade de uma pequena elite, era natural que os escritores atuassem como funcionários públicos. Mas, apesar de se sujeitar a isso, Gonçalves Dias fez uma literatura que questionava o estado das coisas. A primeira expressão dessa contestação está em Meditação”, disse Marques.
Dedo na ferida
Gonçalves Dias estava consciente da própria situação de cooptado e acreditava que a dependência em relação ao Estado era danosa para a produção artística. Em uma carta da década de 1860, o poeta ressaltou que, “enquanto o literato precisar de empregos públicos, não poderá haver literatura digna de tal nome”.
Em sua análise, Marques discute como Gonçalves Dias estava na contramão das expectativas românticas, de valorização da natureza e do índio como “brasileiro autêntico”.
“Além de criticar a escravidão e fugir da corrente comum dos escritores canônicos do romantismo, ele, naquele texto, também criticou de forma virulenta a elite brasileira. Atacou a classe política – que acusou de se aproveitar do bem público para interesses particulares – e criticou a exclusão social”, apontou.
O poeta desferiu golpes não só contra as esferas do poder, mas principalmente contra as esferas do saber. “Em determinado momento ele defendeu que é preciso dar educação ao povo. A estrutura política do Império era excludente em vários aspectos, mas especialmente em relação à educação. Gonçalves Dias colocou o dedo nessa ferida sem rodeios”, afirmou.
Em seu livro, Marques levanta a hipótese de que uma parte particularmente contundente do terceiro capítulo de Meditação pode ter sido censurada. O trecho não foi publicado na versão de 1850 da revista Guanabara, mas reapareceu em uma publicação de 1868. <> “Esse trecho retrata uma conversa noturna dentro de um palácio – que remete ao Palácio São Cristóvão – na qual políticos discutem o que fazer com o Brasil. Um deles questiona o que o Imperador pensará de tal debate. Um dos políticos levanta o véu da cama e diz: ‘o Imperador dorme’. O trecho remete ao período da regência, quando o Imperador era jovem demais para exercer o poder”, disse.
Em sua crítica à escravidão, Gonçalves Dias lançou mão principalmente de argumentos econômicos, segundo o professor da UFSCar. A entrada do Brasil na modernidade, para o poeta, só se daria por meio da implantação do trabalho assalariado.
“Gonçalves Dias não fez uma leitura humanista, como a de Castro Alves. Ele acreditava na superioridade racial dos brancos. Mas, em sua visão, a escravidão era um atraso por impedir a adoção de um modelo capitalista”, disse.
Fonte: Agência FAPESP
Nenhum comentário:
Postar um comentário