O contador de histórias


Ahmad era carpinteiro, ofício que aprendera com seu pai. Fascinado pela leitura, certo dia viu entre suas mãos um livro que relatava as peripécias de Antar bin Chaddád, grande herói e poeta da célebre tribo árabe dos Bani Abas. Os contos o cativaram tanto que ele os lia diversas vezes ao dia ao ponto de, pouco tempo depois, saber recitá-los de cor. Também veio a vontade de contá-los em público para que outras pessoas pudessem desfrutar do prazer que sentia ao ouvir as aventuras de Antara.

Certa noite, no café an-Nawfara, aonde ele costumava ir todas as noites após o trabalho, Ahmad percebeu que o dono do local estava angustiado porque o contador de histórias da casa partira de manhã, rumo a Maalula, uma cidade na Síria onde ainda se fala a língua de Cristo (o aramaico). Ele precisa resolver algumas pendências familiares e talvez demorasse bastante para voltar.

Quando Ahmad propôs ao proprietário do café que ele substituísse o contador de histórias recém-sumido, Khaled aceitou na hora. De fato, ele não tinha escolha. Como poderia explicar aos clientes que vinham todas as noites, ansiosos, que o contador sumira sem previsão de retorno?

Ahmad sentou-se na cadeira reservada ao contador e se pôs a narrar histórias maravilhosas para o encanto da platéia, que bateu palmas e o parabenizou entusiasmada. O encanto era geral.

O proprietário do café ficou impressionado com a apresentação e logo fechou um acordo com Ahmad: daquele dia em diante, depois da oração do Maghrib (que se faz logo após o pôr-do-sol), o novo contador de histórias recitaria as peripécias de Antara e de outros heróis árabes e poderia imitar os sotaques dos locais por onde seus personagens passavam. “Kífak?” dizia seu herói na Síria, para perguntar como alguém estava. E no Egito, para a mesma questão, perguntava: “Izáiak?” Já no Kuait dizia “Shlônak?”.

Ahmad tinha um grande amigo que nascera na cidade de Bagdá, no Iraque, e por isso era chamado de Al-Bagdádi (o bagdali). Ele adorava as hitórias de Antara e não faltava nunca ao café para ouvir Ahmad contar as aventuras de seu ídolo favorito.

Certa noite, Ahmad narrou um episódio sobre o conflito entre os Bani Abas, a tribo de Antara, e os Bani Amara, seus inimigos mais famosos. Durante uma batalha descrita com emoção pelo contador de histórias e acompanhada com atenção pela platéia, Antara era capturado e feito prisioneiro pelos Bani Amara.

Como de costume, o contador interrompeu a história no auge da narrativa prometendo ao público ansioso que relataria o final daquela saga no dia seguinte. Al-Bagdádi foi embora transtornado, sem conseguir parar de pensar no destino de Antara. Caminhou pelas ruas estreitas de Damasco, angustiado, e decidiu voltar para casa. Quando sua mulher lhe deu as boas-vindas, com o sorriso de sempre, ele a ignorou e recusou a comida que ela preparara. “Estou sem fome, sem sede e sem sono. Não quero nada”, disse-lhe. Enquanto revirava na cama e o tempo se arrastava, minuto a minuto, Al-Bagdádi pensava no que poderia fazer para libertar Antara.

No meio da noite, levantou-se, trocou de roupa e foi até a casa de seu amigo, o contador de histórias, com o objetivo de salvar Antara. Bateu na porta com força enquanto gritava: “Como é possível que você consiga dormir tranqüilamente depois de ter jogado Antara atrás das grades? Pelo amor de Deus, acorde já e o liberte. Não consigo pregar o olho sabendo que Antara foi detido por seus inimigos. Se o problema for o dinheiro, não se preocupe. Vou lhe pagar o que o café lhe paga no dia-a-dia. Ou até mais, se você exigir".

Ahmad abriu a porta e percebeu que seu amigo estava mesmo desesperado. É claro que resolveu continuar a história exatamente de onde havia parado. Ele contou como Antara derrotou todos os seus inimigos, recuperou os bens de sua tribo e ainda salvou sua amada, Umm Kalthum.

Al-Bagdádi soltou um profundo suspiro de alívio, como se tirasse um imenso peso do peito, e agradeceu Ahmad de todas as formas, com todos os salamaleques possíveis. Quando fez menção de pagar o amigo como havia prometido, Ahmad recusou o dinheiro e disse: “Saiba, Al-Bagdádi, que eu também não conseguiria dormir sabendo que Antara estava acorrentado. Agora ele está livre! Livre como um pássaro e ao lado de seus familiares e amigos, pronto para novas aventuras!”. Os dois amigos se abraçaram, e Al-Bagdádi retornou para casa com a consciência tranqüila e com bastante fome, agora que todas as suas angústias haviam se acabado.

Depois de comer pão com azeitona e homus, a pasta de grão-de-bico que tanto apreciava, dormiu ali mesmo na cozinha, tomado pelo sono atrasado. Na manhã seguinte, acordou de bom humor e atrasado. Pediu desculpas à esposa por causa da forma como a tratara no dia anterior e lhe contou o final feliz das peripécias de Antara. Sua esposa o perdoou e os dois foram passear no Suq al-Hamidia, o grande mercado de Damasco onde se encontra de tudo: tapetes, roupas, temperos, perfumes, incensos e... muitas histórias.

Autor: Paulo Daniel Farah

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