Sabe aquela história que os pais têm mania de contar para passar sabão na gente? Pois é, essa é mais uma delas. Sempre que eu e minha irmã brigávamos, minha avó sempre vinha com uma dessas “historietas”. Hoje vou contar a história da “A mulher da pedra”.
Acho que todos conhecem o romance “Éramos Seis”, de Maira José Dupré, pois bem, em minha casa éramos duas dúzias. Entre viúvas e primas, uma família extensamente feminina e “confabuladora”. De tanto confabular de uns e de outros sempre havia entre nós, irmãs e primas, um arranca rabo diferente, escondido de nossas mães e tias, é claro!
Quando isso acontecia, dava uma dor de ouvido danada. Era um festival de palavras com caveirinhas, cobrinhas e uma porção de características iguaizinhas as de desenhos animados. Eu ouvia todos eles! E confesso, depois dos quinze, repeti-los era uma delícia.
Certo dia, minha avó, que Deus a tenha, pegou minha irmã e minha prima de jeito. E eu, como sempre, que estava só de telespectadora, entrei no rolo. A diferença de idade entre mim, minhas primas e irmãs era escandalosamente grande, sendo assim, não tinha jeito. Eu tive que crescer com aquele bando de adolescentes com crises de mulher. Bom, voltando, vovó chegou e levou todas nós para o quarto e começou a boa e velha ladainha. A história que vou contar é uma delas.
Certo dia, uma mulher, aparentando suas carregadas quatro décadas, estava lavando as roupas de suas patroas no riacho quando em prantos confessou para sua comadre que não agüentava mais tanto desafeto entre as pessoas que mais amava. Todo dia, era uma “brigaiada” danada dentro de casa. Naquelas brigas fervorosas e carregadas de desafetos, sempre um de sua família caía doente. Quando não era ela, era o mais novo. Quando não era o mais novo, era o mais velho. Quando não, até as crias adoeciam!!! Uma semana as galinhas não botavam, na outra era os coelhos que tinham um piriri. Era um verdadeiro “só por Deus”!
Sua comadre, compadecida de seu fardo, parou. Na verdade tudo pareceu ter parado diante de um lamento tão profundo e verdadeiro. As águas daquele pequeno rio pareciam chorar junto com aquela mulher. Não ventava e as folhas secas, que sem pudor algum caíam com vento ou sem ele, não caíam mais. Diante daquelas duas mulheres, uma compadecida com a dor da outra, formava-se uma imagem digna de um quadro. Entre uma rocha e outra, as marcas de sabão construíam desenhos em suas encostas. Era uma cumplicidade digna de uma poesia.
Mas nem tudo na vida é um caso perdido, e a solução veio com um nome: Ynae. Dona Ynae era uma anciã muito respeitada por aquelas bandas. Suas feitas eram bastante conhecidas nas redondezas. Sua fama era grande! Os barões de café da região mandavam vir buscá-la para realizar suas benzeções. Ela fazia parto, fazia “reza brava”, benzia e até curava espinhela caída. Não havia mal que não curasse e bem que não fizesse que seu resultado não fosse reconhecido e divulgado aos quatro cantos das redondezas. Diziam que ela já era uma senhora centenária. Mas não havia, em sua cabeleira, um único fio branco sequer para comprovar tal teoria.
Solução apontada, aquelas mulheres trataram de deixar a vida prosseguir. Secaram seus prantos. Arregaçaram as mangas e foram novamente às labutas da vida. Ensaboando e esfregando os cueiros e lençóis brancos de linho. As folhas voltaram a cair e o sol a pino e quente anunciava a hora de quarar.
De volta para casa, não tardou a chegar logo em seguida a Dona Ynae. Sua comadre mais que depressa já havia relatado para a santa senhora todos os infortúnios que aquela mulher estava passando. Das desgraças que ocorria em sua casa e do desgaste que vinha sofrendo toda a sua família.
Ao entrar naquela casa simples e de poucos pertences, a benzedeira, olhando lentamente ao seu redor, disse: “Deixa, fia, tudo pra trás. Na sua ida, leva contigo somente o que tiver inteiro. Nada pela metade. Nem mesmo aquela pedra que enfeita sua sala. Nada, nadinha. Somente a famia”. Dizendo isso, fechou os olhos e fez uma oração. Lenta e demorada. Com sua expressão de dor, chorou baixinho e pediu, talvez aos seus santos da terra mãe, talvez ao Pai. Quem sabe?
Aceitou com muito carinho um copo d’água, num copo de barro faltando uma beira, e com olhar de reprovação olhou para o objeto, como quem diz “esse também fica”. Agradeceu. E logo em seguida aconselhou: “Bota fia, bota todo o seu povo numa carroça, segui caminho e não olhi pro que tá deixano”. Sem ponderar essa velha senhora repetiu enfática: “E num leva de jeito nenhum aquela pedra”.
Após as orações, a família seguiu em paz durante alguns dias. Enquanto isso, todos da casa se preparavam para partida. Entre os preparativos para o recomeço estava a seleção do que iria ser levado: quase nada. Há muito aquela família vivia em pé de guerra. A cada briga era uma louça, um artigo de luxo, perdia uma alça ou lascava uma pintura. A cada pontapé, quebrava-se uma cadeira ou uma mesa. A cada discussão, uma panela caía no chão e amassava. Eram, realmente, poucos os objetos que seriam transportados. Mas o maior de todos, aquela mulher havia, à tempo, salvo: a sua família.
No dia da partida, a carroça, já pronta, com poucos pertences e muita esperança, a jovem senhora não seguiu o último conselho e sem pestanejar olhou para trás. Gelada e sem palavras, ela não conseguia crer no que via. Segundo os antigos, a imagem é da ruína humana, da miséria, da desgraça e degradação. Mas a imagem que ela via era de uma velha senhora, maltrapilha, suja, toda mafonhanhada, carregando uma pedra, correndo e gritando: “Espera eu, espera eu”!
Márcia Adão, 18/05/07
Curso de contos árabes e africanos maio/2007