Tudo o que você podia ser


"Nosso maior medo não é o de sermos inadequados. Nosso maior medo é de sermos poderosos demais. O que nos assusta não é o nosso lado sombrio e sim a nossa própria luz.
Perguntamo-nos quem somos nós para sermos brilhantes, lindos, talentosos e fabulosos?
Na verdade, quem somos nós para não o sermos? Somos filhos de Deus.
Diminuir-se a si mesmo não torna o mundo melhor. Não há nada que “iluminado” em se diminuir para que outras pessoas não se sintam inseguras.
Nascemos para ser uma manifestação da glória de Deus.
Não apenas alguns de nós, mas todos nós.
Ao deixarmos a nossa luz brilhar, damos inconscientemente aos outros a permissão de fazer o mesmo.
Ao nos libertarmos do nosso medo, nossa presença automaticamente libera os outros".


Nelson Mandela
Discurso Presidencial de posse, 1994.

Binhografia inacabada

- ?
Ainda não sei quem sou
Mas o meu nome me chama de Robinson
Que diz que quer dizer filho de Robin
Embora meu pai se chamasse Joaquim
- ?
- Meu apelido vem da forma carinhosa dimãenutiva
Quando ela me chamava do campinho que ficava em frente da nossa casa
O qual era minha primeira casa até a luz do dia fugir inteira
- Robiiiiiiiiiinho, mãe chamava, nas horas dela, d'eu vir para dentro
- E eu tardava em retornar, do estádio mais saudoso que o Morumbi não viu
E o eco desse Binho ficou lá, parado no meio daquele chamamento de minha mãe
Naquele campinho de gols, de gol a gol; quando havia poucos para tratar de bola,
Naquele que era o nosso , que os buracos eram nossos, de poças rasas; mas profundas na memória, que quando chovia era uma festa de sujação, mães e mãos bravas
nos tanques, por isso era melhor jogar as peladas quase pelados, bolas de capotão
E quem era o capitão? Nem existia isso não, e o jogo era jogado, ganhado ou perdido às regras nossas, fifas nenhumas, muitos chapéus, poucos bonés, nenhum cartola.
Aquele campinho que ganhei um prego no pé, e que quase me tetanei
Aquele de correrias, pega-pegas cambalhotas e pipas, poucas pipas muitas bolas
Aquele que mil gols eu fiz sem Romário existir, e que Pelé eu vi, nos braços de minha mãe, mas dentro do Morumbi
Aquele de gandulas; de quem ficava para próximo; em dias mais concorridos ou férias, tínhamos pressa, tempo era gol
Aquele de goleiros frangueiros, posição pouco aceita e despopularizada entre nós, época que a seleção atacava e os artilheiros estavam em alta, ficar no gol era quase que uma punição, e poucos se prestavam a agarrar as bolas, a posição era disputada no “dois ou um”, e ser artilheiro nesses casos, uma obrigação
Aquele campinho de galinhas e seus pintinhos que ciscavam por ali, e que vez ou outra uma bola perdida depenava um futuro frango
Que no primeiro tempo era uma descida, e no segundo uma subida, quando havia tempos
De traves feitas do que dava, sem redes, de muitos gols duvidáveis mas inexplicáveis
Formidáveis, goláveis
Aquele campinho, de onde todos saíram vitoriosos, e que nunca nenhum ser humano amanheceu morto por ali
Tempos que não cuidavam dessas desovas
Aí vieram o asfalto, os carrinhos de rolimãs, carros carros carros, os prédios, todos os bancos, as delegacias, os puteiros e as casas Bahia
E o campinho também se transformou
Hoje, ele é apenas um desmanche de carros depenados e apreendidos pela 37ª DP
Aquele campinho não existe mais, eu sei
Mas insiste ainda em mim


Robinson Padial (Binho)

Cheiro de goiaba


Foto: Sakurai Midori


O cheiro de café, do feijão, de torresmo e banana frita me levam numa viagem no tempo que até hoje eu não consegui descrever. São momentos que me fazem recordar a união de minha família. Os laços familiares são correntes da sobrevivência. Ninguém, nenhum homem é uma ilha.

Nunca poderia imaginar que falar de comida e afetividade resultasse num processo de imersão tão grande em minha vida. Entre tantos relatos bonitos, ligados à infância e comida, talvez o meu não seja tão feliz assim. Mas é tão importante quanto. Sou o que sou por ser o que éramos. Nós éramos uma dezena.

Dona Coracy era uma senhora muito simpática e doce. Na descrição rural, ela seria uma verdadeira galinha apanhadeira, pois sempre estava entre seus pintinhos. Dez filhos e uma casa para terminar.

Meu pai finalizou o básico no auge de seus quarenta e faltando uma perna, perdida por acidente de trabalho – história essa que a família, automaticamente, apagou. Eu tinha nove meses. Cresci sem pai. Que coisa!

Com a morte de meu pai, passamos a ser nove caixas de saída e nenhuma caixa de entrada. Com a caridade de poucos vizinhos, e alguns bens deixados pelo meu pai, fomos recebendo doações e vendendo: coelhos, charretes, cavalos... Até ficar com quase nada de criação. Restava apenas vender verduras – chuchu. Até ficar com quase nada. A casa já estava “quase” terminada. Muitos quartos, uma grande cozinha e um quintal a perder de vista.

Com a morte de mais dois irmãos, ainda pequenos, Manoel Emílio e Marcelo, fiquei aos cuidados das minhas irmãs mais velhas e minha mãe começou a lavar roupa para fora. O dinheiro não dava. Passou a trabalhar como doméstica na capital. Quando chegava o domingo, logo pela manhã, eu entrava debaixo da mesa para minha mãe chegar logo. Superstição, mas dava certo. Bastava eu me agachar e o trinco da porta fazia um barulhinho. Mesmo com tanta coisa para fazer, como era bom ver aquela figura materna entrando pela porta adentro! Meu coração parecia explodir de tanta alegria. Ah, seu cheiro. Como é bom cheiro de mãe!

Agora, éramos sete. Com a família um pouco menor, poderia se pensar que as coisas iriam melhorar. Pôr os filhos de quatro e cinco anos para trabalhar era sinônimo de melhoria. Pois bem, estávamos melhorando. Todas domésticas e carregadores de caixas em feiras livres.

O quintal

Com o cerco da ditadura, mulheres, feministas e articuladas, minha irmã mais velha (que considero minha segunda mãe) precisou ir para Portugal. Política. A nossa salvação, por um bom tempo, no entanto, durou pouco. Minha mãe não sabia como trocar o dinheiro, aí, mais uma vez fomos enganados. Mais uma vez. O dinheiro era trocado por uma ninharia que mal dava para passarmos o mês.

O quintal foi a nossa verdadeira salvação. Nele eu tinha o meu mundo. Aos sete anos de idade, conheci verdadeiramente a fome. E confesso, não a achei bonita. Pretendo pular essa parte. São veias que não quero mais mexer.

Mas narro aqui o que realmente interessa: o milagre das goiabas. Com um vasto quintal, na época mais difícil da história de Campinas, tirávamos dali todo o nosso sustento. Mandioca, frutas variadas, verduras. Mas a goiabeira foi uma grande mãe. Tínhamos dois tipos no quintal: a branca e a vermelha. No entanto a vermelha, parecendo sentir a situação precária que passávamos, por um longo período, dava o ano inteiro. Como deu.

Essa goiabeira foi o nosso parquinho, brincávamos nela sempre que acabávamos de fazer nossos deveres, diga-se de passagem “domésticos” e escolares. Xingávamos até na hora de varrer aquele imenso quintal cheio de folhas, abelhas e formigas, por conta das goiabas caídas no chão. Era uma história de amor e ódio, um verdadeiro paradoxo.

O milagre

Em toda minha vida só vi minha mãe chorar uma vez. Na morte de minha irmã Marisa. Naquela época eu já estava com 23 anos. Sendo assim, na minha infância, nunca vi minha mãe chorar. Não na minha frente, pois hoje que sou mãe, sei que elas choram... E como!

Quando eu conheci a fome, eu fui apresentada aos milagres que uma mãe preta é capaz de fazer não tendo nada. Já vivi um mês inteiro à base de goiaba. Estudava de manhã e o meu café da manhã era o pão de minuto – feito com fubá, pois a farinha era cara, banha de porco e sal com uma pequena pitada de açúcar [1]. Minha mãe fazia uma geléia da polpa da goiaba com açúcar preto – mascavo, naquela época açúcar de pobre – e misturava no leite quente. Era um verdadeiro achocolatado, só que de goiaba. Um agoiabado! Perdão pelo neologismo, mas eu não resisti!

No almoço, quando não era salada de goiaba, era macarrão – feito em casa – com molho de goiaba. Carne? Carne! O que é isso? Nem nossos coelhos nós comíamos, de dó. E as galinhas, todas com nome, só iam para panela quando alguém ficava doente. Muito doente mesmo! Eu me lembro de uma de minhas irmãs dizerem: “Que menina de sorte, vai comer canja hoje”. Acho que é por isso que sempre a mesma ficava doente.

O jantar, sempre uma polenta com um molho – rosa – de goiaba ou sopa de fubá com couve. Santa couve. Como eu te comi! Tudo, hoje, referente ao fubá, o máximo que consigo comer é polenta com frango caipira. Se colocar um prato de sopa de fubá na minha frente, eu saio correndo, e se for com couve, vixe!!!

Tínhamos o hábito da ceia. Era religioso antes de dormir cearmos. Tínhamos no cardápio o bolo de fubá e café com leite. Nas marés baixas, era broa de fubá, goiabada cascão e chá de erva cidreira.

Enfim, aquela mulher, arcada pelo peso das trouxas de roupas, realizava na cozinha verdadeiros milagres. Tínhamos manga, banana, mexerica, limão, laranja e limão galego, mas era nas goiabas que mantínhamos a base alimentar da casa.

“Seiscentas calorias, rica em vitamina C e eliminadora dos radicais livres, ou seja, anti-envelhecimento...”

O único arrimo de família, meu irmão Mário, foi minha figura paterna até a adolescência. Envelhecido pelas responsabilidades e acanhado por viver no meio de tantas mulheres, minha mãe nunca escondeu, ou sequer disfarçou, a paixão que tem por ele. Podemos dizer que ele, apesar de seu ostracismo, é o filho perfeito. Mas com a idade e a escola do mundo descobri que ninguém é perfeito.

As égides de minha vida foram as demoradas conversas que tinha com o meu pai. Não me lembro quando isso começou, mas em momentos críticos de tristeza, fome e solidão, eu batia altos papos com o meu velho. Depois de uma longa conversa eu criava forças para uma nova jornada. Sempre perguntava como seria minha vida se meu pai estivesse vivo. Eu queria loucamente ter um pai.

Todos me olhavam de soslaio. Tinham um olhar de piedade. Mas no fundo, no fundo, eu deveria mesmo é ser um fardo para eles. Eu era a única que dependia deles para tudo. Todos moços, trabalhando e eu agachada pelos cantos da casa, secando de saudades de minha mãe.

Com o passar dos anos a família foi cindida. A cada falecimento, a cada partida eu me partia. Minha identidade se perdia. Mas uma vez me encontrava sozinha.

Tínhamos uma vida espartana. Matávamos, ou melhor, meus irmãos matavam um leão por dia. Hoje choro com os relatos de meus alunos. Re-visito minha história, toda vez, quando leio as suas.


Por Márcia Adão


[1] Não se preocupem, darei as receitas.

A porrada e o suco de maracujá


Um belo dia de sol eu e todos os meus amigos estávamos brincando como fazíamos todos os dias, afinal tínhamos um campinho para jogarmos futebol, bolinha de gude, rodar peão, andar de bicicleta, soltar pipa etc.

O campo parecia mais um parque que tentávamos aproveitar o máximo possível, afinal criança gosta de espaço para correr, chutar, gritar e fazer todas as coisas que queriam.

Em um belo dia, brincando no campinho, correndo pra lá e pra cá e faminto como sempre, vem um rapaz mais velho com uma lata de linha e uma pipa no alto. O nome dele é inesquecível. Era o GETÚLIO, rapaz mais velho que sempre soltava pipa com todos os garotos. Mas esse dia foi especial, pois Getúlio sabia do que eu gostava. Não era pipa, peão, linha, bolinha de gude, não; era algo com uma cor diferente e que dizem que nos acalma; era algo inigualável chamado de suco de maracujá.

É isso mesmo, suco de maracujá!

O Getúlio lembrando disso me fez uma proposta tentadora, ele me prometeu um copo grande com suco de maracujá e uma pipa também muito grande e colorida - tudo que qualquer menino queria. Só que a tarefa não era agradável. Porém, não me pareceu tão difícil. Eu tinha apenas que dar um murro no nariz de um amigo, afinal, um amigo não se incomodaria de ajudar um outro amigo, né! O nome dele era JORJINES.

Era algo muito simples: um murro no nariz dele e todo mundo ficaria feliz. Uns mais e outros menos, mas ficaríamos todos felizes. Após pensar durante um breve momento aceitei a proposta: era só uma porrada e eu nem batia tão forte.

Então comecei a tentar convencer o meu amigo a me deixar dar um soco, ou melhor, um pequeno soquinho. Algo leve, doeria só um pouquinho e até estava disposto a dividir o prêmio com ele, a pipa e o suco. Achei justo, mas, infelizmente, a justiça é vista de formas diferentes e sempre beneficiava alguém, e esse alguém no momento era eu.

Já que não consegui pelo jeito fácil, tive que partir para o jeito mais difícil, ou seja, tentar dar o soco sem a permissão do dono do nariz, afinal era uma pipa e um copo enorme com suco de maracujá.

Comecei a tentar acertar um soco e Jorjines nessa altura do campeonato falava:

- Lula, não faz isso, ele quer que nós briguemos.
- Vem cá para eu dar um murro no seu nariz! Eu respondia.

Depois de algumas tentativas, finalmente depois de vários golpes o nariz foi acertado. Só tinha um pequeno problema: o nariz não foi de meu amigo e sim o meu. Que ironia, tentei dar um soco e acabei levando um contra golpe! Aquele garoto que dizia ser meu amigo me deu um soco no meu nariz! Pior do que sentir a dor foi ver o meu nariz sangrando, durante algum tempo. Totalmente tomado pela ira que jorrava pelas minhas narinas, comecei a correr atrás dele, mas era inútil, então decidi ir para casa lavar o rosto.

Cheguei a casa encontrei a ENI, a filha do dono do quintal, onde morávamos. Ela me ajudou a lavar o rosto e depois fui dormir. É isso mesmo, fui dormir porque minha mãe não gostava de brigas e eu sabia que ela tinha dó de me acordar. Então dormir era a solução para que ela não me batesse, afinal já tinha apanhado na rua, não seria justo apanhar duas vezes. Mas desta vez a tática do sono não funcionou, minha mãe me acordou com uns bons tabefes.

Também, quem mandou trocar uma amizade por um copo de suco de maracujá.


Por Luiz Rodrigues dos Santos Neto