Brincadeira de Criança

- "Vocês vão se machucar"!

Comentário de mãe não se discute! Foi assim que teve início esse conto, ou melhor este tombo.

Estava meu irmão e eu brincando de cabra-cega na área de minha casa, as dicas para caminhar por aquele percurso estava acontecendo; "escada, desvia" etc., até que veio a dica - "cuidado o buraco". Acreditava que ele me conduzia a um desvio, mas não foi o aconteceu.

Eu caí no primeiro degrau, meu irmão desceu rolando e eu gritava:

- Pára, pára - como se fosse possível segurar com a fala, o restante do tombo.

Minha preocupação era que não ocorresse o pior com ele, afinal era menor que eu!!! Mas nada disso foi possível prever, afinal o cuidado terminou quando a brincadeira terminou no tombo.

Lembra do aviso de mãe? Quando mãe fala tudo acontece.


Por Deni R. Prado, 23/05/07

Cuidado com o Gordo que o Gordo te pega!

Era uma pacata rua de periferia como outra qualquer. Crianças
brincando pela rua, jogando bola, amarelinha, pião, bolinha de gude,
pipa, enfim todas aquelas delícias de brincadeiras da infância.
Havia nesta rua uma família no mínimo excêntrica. A mãe, Dona Zilda,
um amor de pessoa, ajudou muito minha mãe nos dias difíceis. Ela fazia
a feira para sua casa e sempre levava umas coisinhas pra minha mãe.
Fazia bolos confeitados , coloridos, com aquelas pedrinhas de açucar
que pareciam vidro. Eu adorava.
Ela teve três filhos, assim como a minha mãe, só que os dela eram
todos homens. Eles tinham nomes bem diferentes: Newton, Shalton e
Washington, que para a molecada da rua se transformaram em Nilton,
Joaquinzinho e Chitão.
Eram bons meninos, mas muito tristes. Apesar de todo o carinho que
recebiam de sua mãe, seu pai, Seu Joaquim, aquele homem gordo e
bigodudo, era muito bravo. Não permitia que seus filhos brincassem na
rua. Lembro-me bem de suas carinhas na grade do portão nos espiando as
brincadeiras. Eu morria de dó e muitas vezes ficava do outro lado
brincando com eles.
Às vezes, dona Zilda corria o risco desafiando o marido e soltava os
meninos na rua , antes que ele chegasse do trabalho. Era uma alegria
para aqueles meninos; eles queriam correr, queriam aproveitar cada
minuto.
Todas as crianças da rua tinham medo do Seu Joaquim. Ele tinha um
vozeirão de arrepiar, tinha um bigode que parecia o do Zorro, mas a
barriga o fazia parecer o sargento Garcia. Nós o chamávamos de "O
gordo".
Quando jogávamos bola e ela caía no seu quintal, tínhamos que torcer
pra ele não a achar antes dos meninos, do contrário, lá se ía mais uma
bola. Ele passava a faca e devolvia pra rua, quanta maldade!
Para a maioria das crianças da rua, entrar naquela casa era um
desafio. Num bairro de periferia, geralmente as crianças tomam conta,
invadem as casas dos amigos, comem pão, bolo, o que tiver pela frente.
Naquela casa isso não acontecia. Eu era uma exceção: Dona Zilda me
adorava, dizia que eu ia me casar com o caçula, o Joaquinzinho
(Shalton), ela fazia coisas deliciosas e eu a ajudava a varrer a casa.
Todas as crianças me rodeavam pra saber o que eu estava fazendo lá
dentro da casa do Gordo.
Havia uma época do ano em que as crianças podiam entrar lá. Não me
recordo em que mês, acho que na época do calor, apareciam as
tanajuras, conhecida por alguns como Içá. Seu Joaquim adorava comer
bunda de tanajura frita, que nojo!
Como ele era muito gordo, tinha dificuldades pra pegá-las, então ele
pagava pra molecada pegar. Cada um arrumava uma latinha vazia e saia
pela rua, pegando tanajura, mas tinha que ser daquelas bem bundudas.
Para nós, crianças, era uma festa. Além da farra atrás dos bichinhos,
ganhávamos umas moedinhas e ainda por cima tínhamos a chance de entrar
na casa do Gordo.
No final, ele fritava as bundas das tanajuras e comia com farinha.
Aquele cheiro se espalhava por toda a vizinhança, era horrível.
Dona Zilda morreu muito nova, 33 anos, de derrame. Foi uma tristeza
danada, me lembro de ter sido meu primeiro contato com a dor da morte.
Seu Joaquim se casou logo, já tinha outra esposa na manga e os meninos
ficaram ainda mais tristes.
Esta é uma das histórias da minha infãncia. Poucas vezes depois disso
senti o cheiro de bunda de tanajura frita, nem sei se elas ainda
existem, mas é um cheiro que se eu sentir em qualquer lugar vou saber
identificar.

Por Suzi Aguiar Soares, 24/05/07

Campo Limpo Taboão

Quando nasci, tinha seis anos.
No lugar em que nasci,
Sonhava que tudo era nosso.
Tinha os campinhos e os terrenos baldios.
Era meu território.
Já foi interior,
Hoje periferia com as casas cruas.
As vacas com tetas gruas
Não existem mais.
A cerca virou muro. Óbvio.
A cidade cresce,
O muro cresce.
Vieram os prédios, as delegacias, os puteiros
e as Casas Bahia.
Também cresci
Fiquei grande.
Já não caibo dentro de mim
E de tão solitário
Sou meu próprio vizinho.
E de tão solitário
Sou meu próprio vizinho.

por Binho (Robinson Padial), 24/05/2007

O contador de histórias


Ahmad era carpinteiro, ofício que aprendera com seu pai. Fascinado pela leitura, certo dia viu entre suas mãos um livro que relatava as peripécias de Antar bin Chaddád, grande herói e poeta da célebre tribo árabe dos Bani Abas. Os contos o cativaram tanto que ele os lia diversas vezes ao dia ao ponto de, pouco tempo depois, saber recitá-los de cor. Também veio a vontade de contá-los em público para que outras pessoas pudessem desfrutar do prazer que sentia ao ouvir as aventuras de Antara.

Certa noite, no café an-Nawfara, aonde ele costumava ir todas as noites após o trabalho, Ahmad percebeu que o dono do local estava angustiado porque o contador de histórias da casa partira de manhã, rumo a Maalula, uma cidade na Síria onde ainda se fala a língua de Cristo (o aramaico). Ele precisa resolver algumas pendências familiares e talvez demorasse bastante para voltar.

Quando Ahmad propôs ao proprietário do café que ele substituísse o contador de histórias recém-sumido, Khaled aceitou na hora. De fato, ele não tinha escolha. Como poderia explicar aos clientes que vinham todas as noites, ansiosos, que o contador sumira sem previsão de retorno?

Ahmad sentou-se na cadeira reservada ao contador e se pôs a narrar histórias maravilhosas para o encanto da platéia, que bateu palmas e o parabenizou entusiasmada. O encanto era geral.

O proprietário do café ficou impressionado com a apresentação e logo fechou um acordo com Ahmad: daquele dia em diante, depois da oração do Maghrib (que se faz logo após o pôr-do-sol), o novo contador de histórias recitaria as peripécias de Antara e de outros heróis árabes e poderia imitar os sotaques dos locais por onde seus personagens passavam. “Kífak?” dizia seu herói na Síria, para perguntar como alguém estava. E no Egito, para a mesma questão, perguntava: “Izáiak?” Já no Kuait dizia “Shlônak?”.

Ahmad tinha um grande amigo que nascera na cidade de Bagdá, no Iraque, e por isso era chamado de Al-Bagdádi (o bagdali). Ele adorava as hitórias de Antara e não faltava nunca ao café para ouvir Ahmad contar as aventuras de seu ídolo favorito.

Certa noite, Ahmad narrou um episódio sobre o conflito entre os Bani Abas, a tribo de Antara, e os Bani Amara, seus inimigos mais famosos. Durante uma batalha descrita com emoção pelo contador de histórias e acompanhada com atenção pela platéia, Antara era capturado e feito prisioneiro pelos Bani Amara.

Como de costume, o contador interrompeu a história no auge da narrativa prometendo ao público ansioso que relataria o final daquela saga no dia seguinte. Al-Bagdádi foi embora transtornado, sem conseguir parar de pensar no destino de Antara. Caminhou pelas ruas estreitas de Damasco, angustiado, e decidiu voltar para casa. Quando sua mulher lhe deu as boas-vindas, com o sorriso de sempre, ele a ignorou e recusou a comida que ela preparara. “Estou sem fome, sem sede e sem sono. Não quero nada”, disse-lhe. Enquanto revirava na cama e o tempo se arrastava, minuto a minuto, Al-Bagdádi pensava no que poderia fazer para libertar Antara.

No meio da noite, levantou-se, trocou de roupa e foi até a casa de seu amigo, o contador de histórias, com o objetivo de salvar Antara. Bateu na porta com força enquanto gritava: “Como é possível que você consiga dormir tranqüilamente depois de ter jogado Antara atrás das grades? Pelo amor de Deus, acorde já e o liberte. Não consigo pregar o olho sabendo que Antara foi detido por seus inimigos. Se o problema for o dinheiro, não se preocupe. Vou lhe pagar o que o café lhe paga no dia-a-dia. Ou até mais, se você exigir".

Ahmad abriu a porta e percebeu que seu amigo estava mesmo desesperado. É claro que resolveu continuar a história exatamente de onde havia parado. Ele contou como Antara derrotou todos os seus inimigos, recuperou os bens de sua tribo e ainda salvou sua amada, Umm Kalthum.

Al-Bagdádi soltou um profundo suspiro de alívio, como se tirasse um imenso peso do peito, e agradeceu Ahmad de todas as formas, com todos os salamaleques possíveis. Quando fez menção de pagar o amigo como havia prometido, Ahmad recusou o dinheiro e disse: “Saiba, Al-Bagdádi, que eu também não conseguiria dormir sabendo que Antara estava acorrentado. Agora ele está livre! Livre como um pássaro e ao lado de seus familiares e amigos, pronto para novas aventuras!”. Os dois amigos se abraçaram, e Al-Bagdádi retornou para casa com a consciência tranqüila e com bastante fome, agora que todas as suas angústias haviam se acabado.

Depois de comer pão com azeitona e homus, a pasta de grão-de-bico que tanto apreciava, dormiu ali mesmo na cozinha, tomado pelo sono atrasado. Na manhã seguinte, acordou de bom humor e atrasado. Pediu desculpas à esposa por causa da forma como a tratara no dia anterior e lhe contou o final feliz das peripécias de Antara. Sua esposa o perdoou e os dois foram passear no Suq al-Hamidia, o grande mercado de Damasco onde se encontra de tudo: tapetes, roupas, temperos, perfumes, incensos e... muitas histórias.

Autor: Paulo Daniel Farah

As duas moças bonitas como melancias


Logo na introdução do conto, onde há a descrição da aldeia onde viviam as duas moças, lembrei de uma idéia presente em muitas tradições: a fartura como felicidade de um povo.

Também me lembrei de um fato curioso que me aconteceu em relação à MELANCIA.

Fui participar de uma seleção para uma empresa na qual sempre almejei trabalhar, pelo simples fato de que seu endereço era, nada mais e nada menos, no centro empresarial do Jardim São Luís, a referência local de sucesso profissional.

Pois bem. Eu, com meus 17 anos, fui submetida a vários testes psicológicos típicos de seleções de RH, como exercícios de lógica, dinâmicas e, é claro, uma redação! Aí é que entra a MELANCIA, pois na redação fora pedido que o candidato dissertasse sobre uma fruta que gostaria de ser.

Pensei, pensei e escolhi a... MELANCIA! Justifico-me. Esta fruta é para mim a que mais oferece dádivas em fartura para o homem, com muita água, polpa e sementes. Então, logo relacionei toda essa fartura com o meu potencial a ser dedicado à tal empresa.

Resultado: não fui selecionada para a vaga. Matutei durante anos sobre qual teria sido meu erro e sempre culpava a MELANCIA!

Hoje em dia tenho uma hipótese embasada na crítica de nossa visão de mundo ocidental e capitalista. Ao se deparar com meu perfil, entende-se, mulher jovem negra e moradora da periferia que cercava o "forte empresarial", o selecionador logo relacionou minha vontade em ser MELANCIA com futuros problemas para a empresa...

Provavelmente, para ele, toda essa minha "fartura", principalmente de sementes, representaria muitas licenças-maternidade!

A mulher da pedra


Sabe aquela história que os pais têm mania de contar para passar sabão na gente? Pois é, essa é mais uma delas. Sempre que eu e minha irmã brigávamos, minha avó sempre vinha com uma dessas “historietas”. Hoje vou contar a história da “A mulher da pedra”.[1]

Acho que todos conhecem o romance “Éramos Seis”, de Maira José Dupré, pois bem, em minha casa éramos duas dúzias. Entre viúvas e primas, uma família extensamente feminina e “confabuladora”. De tanto confabular de uns e de outros sempre havia entre nós, irmãs e primas, um arranca rabo diferente, escondido de nossas mães e tias, é claro!

Quando isso acontecia, dava uma dor de ouvido danada. Era um festival de palavras com caveirinhas, cobrinhas e uma porção de características iguaizinhas as de desenhos animados. Eu ouvia todos eles! E confesso, depois dos quinze, repeti-los era uma delícia.

Certo dia, minha avó, que Deus a tenha, pegou minha irmã e minha prima de jeito. E eu, como sempre, que estava só de telespectadora, entrei no rolo. A diferença de idade entre mim, minhas primas e irmãs era escandalosamente grande, sendo assim, não tinha jeito. Eu tive que crescer com aquele bando de adolescentes com crises de mulher. Bom, voltando, vovó chegou e levou todas nós para o quarto e começou a boa e velha ladainha. A história que vou contar é uma delas.

Certo dia, uma mulher, aparentando suas carregadas quatro décadas, estava lavando as roupas de suas patroas no riacho quando em prantos confessou para sua comadre que não agüentava mais tanto desafeto entre as pessoas que mais amava. Todo dia, era uma “brigaiada” danada dentro de casa. Naquelas brigas fervorosas e carregadas de desafetos, sempre um de sua família caía doente. Quando não era ela, era o mais novo. Quando não era o mais novo, era o mais velho. Quando não, até as crias adoeciam!!! Uma semana as galinhas não botavam, na outra era os coelhos que tinham um piriri. Era um verdadeiro “só por Deus”!

Sua comadre, compadecida de seu fardo, parou. Na verdade tudo pareceu ter parado diante de um lamento tão profundo e verdadeiro. As águas daquele pequeno rio pareciam chorar junto com aquela mulher. Não ventava e as folhas secas, que sem pudor algum caíam com vento ou sem ele, não caíam mais. Diante daquelas duas mulheres, uma compadecida com a dor da outra, formava-se uma imagem digna de um quadro. Entre uma rocha e outra, as marcas de sabão construíam desenhos em suas encostas. Era uma cumplicidade digna de uma poesia.

Mas nem tudo na vida é um caso perdido, e a solução veio com um nome: Ynae. Dona Ynae era uma anciã muito respeitada por aquelas bandas. Suas feitas eram bastante conhecidas nas redondezas. Sua fama era grande! Os barões de café da região mandavam vir buscá-la para realizar suas benzeções. Ela fazia parto, fazia “reza brava”, benzia e até curava espinhela caída. Não havia mal que não curasse e bem que não fizesse que seu resultado não fosse reconhecido e divulgado aos quatro cantos das redondezas. Diziam que ela já era uma senhora centenária. Mas não havia, em sua cabeleira, um único fio branco sequer para comprovar tal teoria.

Solução apontada, aquelas mulheres trataram de deixar a vida prosseguir. Secaram seus prantos. Arregaçaram as mangas e foram novamente às labutas da vida. Ensaboando e esfregando os cueiros e lençóis brancos de linho. As folhas voltaram a cair e o sol a pino e quente anunciava a hora de quarar.

De volta para casa, não tardou a chegar logo em seguida a Dona Ynae. Sua comadre mais que depressa já havia relatado para a santa senhora todos os infortúnios que aquela mulher estava passando. Das desgraças que ocorria em sua casa e do desgaste que vinha sofrendo toda a sua família.

Ao entrar naquela casa simples e de poucos pertences, a benzedeira, olhando lentamente ao seu redor, disse: “Deixa, fia, tudo pra trás. Na sua ida, leva contigo somente o que tiver inteiro. Nada pela metade. Nem mesmo aquela pedra que enfeita sua sala. Nada, nadinha. Somente a famia”. Dizendo isso, fechou os olhos e fez uma oração. Lenta e demorada. Com sua expressão de dor, chorou baixinho e pediu, talvez aos seus santos da terra mãe, talvez ao Pai. Quem sabe?

Aceitou com muito carinho um copo d’água, num copo de barro faltando uma beira, e com olhar de reprovação olhou para o objeto, como quem diz “esse também fica”. Agradeceu. E logo em seguida aconselhou: “Bota fia, bota todo o seu povo numa carroça, segui caminho e não olhi pro que tá deixano”. Sem ponderar essa velha senhora repetiu enfática: “E num leva de jeito nenhum aquela pedra”.

Após as orações, a família seguiu em paz durante alguns dias. Enquanto isso, todos da casa se preparavam para partida. Entre os preparativos para o recomeço estava a seleção do que iria ser levado: quase nada. Há muito aquela família vivia em pé de guerra. A cada briga era uma louça, um artigo de luxo, perdia uma alça ou lascava uma pintura. A cada pontapé, quebrava-se uma cadeira ou uma mesa. A cada discussão, uma panela caía no chão e amassava. Eram, realmente, poucos os objetos que seriam transportados. Mas o maior de todos, aquela mulher havia, à tempo, salvo: a sua família.

No dia da partida, a carroça, já pronta, com poucos pertences e muita esperança, a jovem senhora não seguiu o último conselho e sem pestanejar olhou para trás. Gelada e sem palavras, ela não conseguia crer no que via. Segundo os antigos, a imagem é da ruína humana, da miséria, da desgraça e degradação. Mas a imagem que ela via era de uma velha senhora, maltrapilha, suja, toda mafonhanhada, carregando uma pedra, correndo e gritando: “Espera eu, espera eu”!

Márcia Adão, 18/05/07


[1] Curso de contos árabes e africanos maio/2007

Lançamento do Livro "Punga"


"manchei de preto a página branca
quebrando as barreiras invisíveis
invadi esse espaço que finge ser livre
rabisquei interrogando e cheio de exclamação
se somos tantos! onde estamos todos?
entre parênteses e cheio de reticências
colchetes tranca revolta em garrancho
página branca oprimi letras pretas
pra não deixar de ser rascunho
e ter sempre dentro de si
um ponto final"
"Enfoque Subjetivo" - Akins Kinté

O texto acima faz parte de "Punga - literatura negra", uma coletânea de poemas de Elizandra Souza e Akins Kinté. O livro foi organizado autores e pela Edições Toró. Com ilustrações dos artistas negros Bylla, Coyote e Marco.

O lançamento do livro acontece dias 16 e 22 de maio, no Sarau da Cooperifa e na sede da Ação Educativa.


16/05
Horário: 21h
Onde: Sarau da Cooperifa - Rua Bartolomeu dos Santos, 797
Jardim Guarujá - Zona Sul
(Estrada do M'Boi Mirim, atrás da Igreja do Piraporinha)
Telefone: 5891-7403

22/05
Horário: 19h
Onde: Ação Educativa - Rua General Jardim, 660
Vila Buarque - Centro
(Próximo à estação República do metrô)
Telefone: 3151-2333

Café com farinha

Na verdade, seria até uma lista considerável de quitutes e sabores que me religam a sentimentos da infância: bolo de fubá, amendoim cozido, cuscuz, batata doce, pipoca, etc.

Mas há algo que hoje me faz recordar o quanto heróica e sábia é minha mãe.

Nestes dias, para ser mais preciso no curso de contos africanos e árabes, no dia 28 de abril de 2007, quando se falava das lembranças afetivas em respeito aos alimentos, a Nilda falou da segurança que os alimentos ou o momento das refeições nos traz.

Lembrei-me de uma época em que minha mãe nos dava café com farinha, devido à escassez de alimentos em casa. No faltava o arroz e feijão, mas sabe aquele lanche da tarde em que a família (neste caso eu, meus irmãos e minha mãe) partilhava em frente à TV?

Então, neste momento minha mãe entrava com sua criatividade e nos ensinara a comer farinha e tomar café juntos, diz que fazia muito isto na cidade de Inhambupe – Bahia, quando ainda era criança, e que sua mãe também lhe ensinara. Nossa!!! E como parecia um lanche da tarde maravilhoso!!! Pois, transformava o simples em algo tão gostoso, que nem parecia apenas um café com farinha.

Além desta maravilhosa sensação, vinha um sentimento de proteção que somente as mães sabem dar, não desmerecendo meu pai que se esforçava muito em trazer alimento para dentro de casa.

É incrível como alguns gestos podem trazer uma sensação tão boa.

Café com farinha, o meu lanche de tantas tardes, trazia-me paz e segurança.

Edson Silva de Jesus, 09/05/07

Memórias Polvilhadas

Não era gosto de dia-a-dia, e sim de dias especiais. Tão especiais que até dá para contar nos dedos.

Férias escolares com direito a viagem! Acho que foram três no máximo, longas viagens de duas noites e um dia e muitas paradas em cidades pequeninas e aconchegantes.

De São Paulo a Sergipe, muitas expectativas se acumulavam: encontro com a única avó ainda viva, paisagem de secura, memórias de mãe retirante...Viagens pontuais, mas extremamente providenciais.

A cada parada um novo ar, um novo sotaque, novas lembrancinhas. Mas havia um gosto que era comum a todas: o POLVILHO! Da saída de São Paulo, ainda em Aparecida do Norte; passando por Minas, de onde provavelmente ele se espalhou; até chegar ao Nordeste, ele vai dando o gosto à viagem...

Apesar de degustar muitas outras delícias e gostos estranhos ao meu paladar após a chegada em Poço Verde - SE, de buchada de bode a umbunzada, foi o leve sabor do biscoito de polvilho que ficou.

Só depois soube de minha avó paterna mineira. Talvez dela tenha herdado esse gosto, justamente quando ia de encontro à avó nordestina!

Quando em minha terra natal, o ato de experimentar biscoito de polvilho remete a lembrança de encontros esfusiantes e despedidas dolorosas, que não se repetiram muitas vezes, entre minha mãe e minha avó.

Só depois vim perceber minha fissura pela mandioca, e por todos os produtos derivados dela, inclusive o polvilho. Hoje penso que, degustar o biscoito de povilho durante a viagem de encontro de minhas raízes, também pode simbolizar o (des)enraizamento da mandioca, matéria-prima minha.

O mais curioso é que a primeira história que consta em minha memória, contada pela professora ainda no prezinho, é sobre o surgimento da mandioca! Mas esta eu conto depois....

Um babalaô me contou

Foto: Ferrez

Um babalaô me contou:

"Antigamente, os orixás eram homens.
Homens que se tornaram orixás por causa de seus poderes.
Homens que se tornaram orixás por causa de sua sabedoria.
Eles eram respeitados por causa da sua força,
Eles eram venerados por causa de suas virtudes.
Nós adoramos sua memória e os altos feitos que realizaram.
Foi assim que estes homens tornaram-se orixás.
Os homens eram numerosos sobre a Terra.
Antigamente, como hoje, muito deles não eram valentes nem sábios.
A memória deste não se perpetuou.
Eles foram completamente esquecidos;
Não se tornaram orixás.
Em cada vila, um culto se estabeleceu
Sobre a lembrança de um ancestral de prestígio
E lendas foram transmitidas de geração em geração, para render-lhes homenagem"

Fonte: Lendas Africanas dos Orixás – Pierre Fatumbi Verger

Essa história de memória de alimentos é mesmo impressionante!


Essa história de memória de alimentos é mesmo impressionante!

Finalmente vou contar a minha. Entre tantas tive que escolher uma, mas antes quero dizer que aqueles bolinhos de chuva que mamãe fazia eram interessantes porque nós ficávamos achando a forma de um objeto qualquer ou de um animal a cada bolinho que mamãe colocava no prato.

E tem outra memória: sempre que ela ia fazer tutu de feijão, nós (eu e meu irmão) pegávamos na mão e apertávamos para fazer bolinhos em forma de tatu.

Essas memórias são mesmo de fazer encher os olhos de lágrimas pois bate uma saudade daquela época! Até posso deixar uma sugestão para o “dia das mães”. Que tal no encontro de domingo, dia 13, para recordar essas lembranças? Claro que não se pode esquecer do presente!

Mas a memória que eu reservei é bem legal. Acho!

Quando eu era pequeno (uns 8 anos, mais ou menos), minha mãe adorava me dar ovos de codorna. Todo dia eu tinha que comer um, cozido, é claro ! E por trás disso, tinha algo interessante. Todo dia, ela me pedia que eu fosse recolher os ovinhos no galinheiro das codornas (tínhamos umas 6), mas antes eu tinha que alimentá-las. Acho que era um jogo.

Bom, não pára por aí: ela ainda dizia que os ovos eram para me deixar inteligente na escola. Se todo dia eu comesse um ovinho, ficaria mais inteligente. Acho que havia outro jogo dela, porque ela dizia que eu tinha que estudar, ler o caderno, prestar atenção na aula, essas coisas, para o ovo fazer efeito. E eu acreditava! Não sei o que era certo, só sei que funcionava.

O pior vem agora.

Um dia em que nasceram 4 filhotinhos de codorna, perguntei à minha mãe se eu poderia brincar com elas e ela, que parecia brava mas no fundo era muito carinhosa, disse que sim, desde que eu não as machucasse.

Então, eu as trouxe para o sofá e fiquei brincando. Não sei o que pôde ter acontecido, acabei machucando uma delas. Minha mãe ficou verde de raiva. Pegou uma vara que chamava de vara de marmelo – não sei onde ela achava, parecia que tinha uma plantação. Essa vara, quando ela batia, doía que só !

Eu que queria ser mais esperto, saí correndo. Entrava pela porta da cozinha e saía pela porta da sala e ela atrás, parecia brincadeira de pega-pega. Mas que nada, era sério mesmo !

Minha mãe foi mais inteligente que eu (acho que ela comia 2 ovos por dia !), e fechou a porta da cozinha, me encurralou. Aí....

Não sei porque, hoje eu adoro ovos de codorna. Há quem diga que ele faz outros efeitos; não sei, só sei que gosto.

Juvenal Domingos, 05/05/07

As coisas gostosas que minha avó fazia


Quando lembro do passado, sempre vem à minha mente as coisas gostosas que minha avó fazia, e a viagem de trem que fazíamos para visitar a bisa. Ela morreu aos 108, já estava um pouco esclerosada, mas durinha.

Um dia ela deu carreira atrás de mim com uma vassoura e ficou um tempão embaixo do pé de manga esperando eu descer. Também lembro que ela varria o terreiro, com sua vassoura de galhos, às 5h da manhã, religiosamente.

O que eu gostaria de trazer, de verdade, eram os beijus feitos no forno da casa de farinha. A casa era arrendada de um fazendeiro vizinho para torrar farinha porque minha avó ia para a roça 2 vezes por ano, julho e dezembro, e meus tios combinavam e colhiam um lote de mandioca para fazer farinha e beiju seco. Esses beijus alimentavam os seus 12 filhos.

Mesmo sendo criança eu participava de todo o processo. Aliás, todo não porque meus tios não deixavam as crianças arrancarem os pés de mandioca porque deixávamos a raiz dentro da terra. Então, na hora de descascar a mandioca , nós fazíamos a “meia sola” e as mulheres, com as mãos mais limpas, faziam a segunda parte. Depois da mandioca toda raspada, era transportada para a casa da farinha , onde era ralada. Era preciso muito cuidado, tive um tio que perdeu o dedo na máquina. Após colocar a mandioca ralada na prensa, as mulheres aparavam a água em bacias. Nesse dia, nós dormíamos na casa de farinha envolvidos neste trabalho. Eram tantas histórias!

Pela manhã, recolhiam as bacias. A tapioca se concentrada no fundo e a água que estava por cima era jogada fora. Com as mãos, soltavam a tapioca que estava concentrada e, após uma secagem no chão do forno, começava-se a assar os beijus que seriam servidos com um café quentinho.

Essas são as lembranças mais gostosas das minhas férias na roça. Como não tenho os beijus, decidi trazer as broas de milho que minha avó fazia para tomar com café, ela não gostava de pão. “Não tem sustância”, dizia . Quando havia beiju, ela fazia as broas e na falta dela, era farinha com feijão logo pela manhã.

Lembro ainda que a vó não gostava que eu ajudasse, meu sonho era poder modelar aquelas broas, no entanto ela nunca deixava, dizia que era coisa de adulto, assim como ela não deixava nem eu pegar na colher de pau para mexer o doce de goiaba vermelha, pois ela dizia que se duas pessoas mexessem o doce desandava.

Desandar? Que palavra esquisita! Ficava pensando o eu significava isso, mas não questionava, ficava quieta no meu canto porque acreditava em tudo que a vó falava e esperava ansiosa pelas broas e o doce de goiaba.


Cristina Maria de Jesus Lima, 28/04/2007

Elizandra e Elizângela arrancavam mudubim

Morávamos no interior da Bahia, numa cidade pequena. Todos da nossa família moravam na área rural e quando as férias de julho chegavam, era época da colheita do amendoim.

Íamos passar as férias na casa dos nossos avós ou da nossa tia. Mas tínhamos que acordar cedo, junto com os adultos para ir “arrancar mudubim” – era assim que chamavam para colher o amendoim. Não íamos juntas não, era uma semana para cada uma.

Eram muitas as novidades. Tudo o que aprendíamos na escola levávamos para a roça. E para saber se tudo o que diziam na escola era verdade, perguntávamos para o nosso avô. Por exemplo, sobre o orvalho nas folhas, ele disse que eram lágrimas do céu. Achava que era por isso que tinha neblina, mas não entendia o porquê da fumaça ao amanhecer.

O amendoim sempre fez parte da nossa vida, e na infância foi muito mais presente. Tenho lembrança de quando o meu pai vendia amendoim cozido nas feiras das cidades vizinhas. Uma de nós sempre ia com ele para ajudar. Adorávamos! Era um bom pretexto para passearmos.

Elizângela e Elizandra Batista de Souza, 28/04/07

Márcia Adão descobre a história: SOMBRAS DA CIDADE



Era uma negra moça ainda, uns 34 anos, mais ou menos. E andava por aí, ao léu, vivendo de esmolas. Não era muito certa do juízo ao que diziam.

Contudo, possuía de seu, um colchão e um filho de cinco anos. Colchão que era só trapo voando e tripas de capim saindo pra fora. Quanto ao filho, diabrete incorrigível, preto feito peixe, era o terror da molecada, das vidraças e dos jardins públicos e particulares.

E aquela mãe negra, moça ainda, 34 anos mais ou menos, andava por ai, ao léu, vivendo de esmolas, o colchão às costas, gritando o nome do filho, diabrete de cinco anos, que descia de um balaústre e atravessava a rua, num relâmpago, a frente de automóveis velozes, pra puxar, pelo rabo, o angorá dorminhoco de uma janela.

- Filhiiiiiinho! Venha cá, meu filho!

Era um peregrinar, por essas ruas de meu Deus, desde as primeiras horas do dia. Colchão às costas feito mochila de soldado, escola encardida pendente do braço, as roupas em frangalhos, macilenta, sossegada, os olhos como que olhando pra dentro, aquela mãe, moça ainda, colhia por esmola, aqui, um pedaço de pão; ali, algumas laranjas;acolá, uma moeda; mais adiante, um desaforo....

Não era muito certa do juízo, coitada. E se não tinha palavras com que agradecer o pedaço de pão, as laranjas ou a moeda, também não tinha boca pra responder ou íntimo pra sentir ofensas. As suas palavras, a sua boca, o seu íntimo, tudo, tudo que dispunha, resumia-se naquele nome que era um poema santo a transformar em ouro os trapos do seu destino.

- Filhiiiiiinho! Venha cá, meu filho!

E a noite descia sobre a cidade. A jovem mãe, no entanto, só tomava conhecimento do reinado da Lua ao ouvir a voz do filho:

- Mamãe. Quando é que se dorme hoje?

Ela estancava surpresa. Ué...E procurava com os olhos, uma árvore, uma construção, um canto de parede.... E estendia o colchão, que era uns farrapos. E deitava-se, aconchegando o filho junto aos seios.

- Tadinho! Judiação, não é? Batendo rua o dia inteiro... Bi, bi, bi... Quem é que tem um filhinho mais bonito? ...

E dormia. Ao sereno, ao vento, à chuva...

Certo dia, lá ia aquela mãe, preta, maltrapilha, o colchão às costas, a sacola de esmolas no braço e o filho à frente, saracoteando, atirando pedras, escorraçando os cachorros e gatos de luxo das janelas, batendo nas crianças finas de gente rica, trepando nas grades, falando nomes feios. Um completo capetinha. Nada o intimidava. Nem a cara feia dos homens; nem a dentuça dos policiais de coleiras registradas. Talvez nem ouvisse aquela voz doce chamando-o carinhosamente:

- Filhiiiiinho! Venha cá, meu filho!

E ao atravessar a rua na disparada, é colhido, em cheio, por um caminhão. Corpo magro, levezinho, foi atirado a uma distância de vinte passos. Estava morto.

Foi um alvoroço. O chofer nem teve tempo de sair do carro. Em poucos momentos viu-se cercado de gente – homens, mulheres, crianças – ameaçando-o, mostrando-lhe os punhos cerrados...

Uma menininha de cor de rosa, muito corada, desvencilha-se da pajem entra correndo, em casa e com a voz embargada pelo soluço, abraça-se com uma bela senhora:

- O Filhinho, mamãe!

Devia ser uma louca aquela negra. Estava no meio da rua, ante a multidão boquiaberta debruçada sobre o cadáver ensangüentado de um menino. E falava baixinho, carinhosa:

- Tadinho! Judiação não é? Batendo rua o dia inteiro....Bi, bi, bi, bi .... Quem é que tem um filhinho mais bonito?

Bolinhos de Chuva

Quando nos foi sugerido trazer um lanche que tivesse alguma importância afetiva, de imediato me veio à lembrança os bolinhos de polvilho que meu pai fazia.

Quando criança, ele nos acordava aos domingos com seus bolinhos, ninguém conseguia ficar na cama com aquele cheirinho vindo da cozinha.

Meu pai é de família mineira de 15 irmãos. Todos eles sabem fazer esta iguaria, as outras gerações também já aprenderam e estão passando a receita para frente...

A caminho do curso, encontrei duas colegas que ficaram muito felizes em saber que eu trazia os tais bolinhos pois, da mesma forma que eu, elas que também são de famílias mineiras, têm boas recordações dos bolinhos e suas infâncias.

É muito importante que cada de nós possa resgatar as memórias e histórias de nossas famílias. Histórias que fizeram parte da nossa criação e que servirão de alicerce para o resto de nossas vidas e dos nossos filhos.
Suzi de Aguiar Soares, 28/04/07